No pior dia de sua vida, à beira da morte, Kayla, uma mulher escravizada, foi salva por uma desconhecida que lhe deu sobrevida e poder para se vingar do seu opressor, transformando-o em algo totalmente desconhecido.
Sem muitas informações do que se tornara e sobre como sobreviver sendo aquilo, Kayla precisa aprender a viver com suas novas habilidades e limitações, seguir na busca da sua criadora e encontrar o seu lugar no mundo enquanto se alimenta de homens abusadores.
Uma história que mistura o sobrenatural com o realismo histórico do sertão nordestino.
Resenha
É uma infeliz realidade o fato de que a imensa maioria de nós, mulheres, já foi assediada de alguma maneira. É fato também, e bastante justificável, que muitos adorariam revidar tamanho constrangimento. Pois bem...
Kayla caminha sozinha pela rua, quando é vítima de uma tentativa frustrada de estupro. O insucesso do crime se deve ao fato de que a moça, aparentemente indefesa, é, na verdade, uma vampira. Lançando mão de poderes sobre humanos, Kayla subjuga o agressor e garante que ele jamais torne a repetir tal ato.
Assim tem início “A Cor Encarnada”, livro independente da autora e psicóloga cearense, Tine Cabral.
O que à primeira vista se assemelha a uma narrativa moderna sobre vingança, com traços de sobrenatural, rapidamente mergulha em águas mais profundas. A história de Kayla, mulher preta, feita vampira durante o episódio mais traumático de sua centenária existência, alude a importantes passagens históricas do nosso país.
Kayla que foi escrava, mãe, viveu os horrores da guerra e conheceu bem uma época em que ser mulher conferia pouca ou nenhuma relevância a alguém, especialmente a alguém negra, alcança as maravilhas tecnológicas do século XXI, e nelas deposita uma última esperança de encontrar a misteriosa mulher que, tanto tempo no passado, a transformou em vampira.
A Cor Encarnada não é uma trama convencional sobre vampiros. A história de Kayla confere algo de familiar ao enredo, seja pela ambientação em terras brasileiras ou por retratar com sensibilidade as dores e amores que uma mulher real, apesar da alegoria fantástica, possa ter vivido em diferentes alturas da nossa história.
Uma narrativa simples e objetiva que, sem grandes floreios, é capaz de levar o leitor às páginas finais rapidamente, movido pela necessidade de conhecer o desfecho que aguarda Kayla em sua saga contemporânea, à procura de fantasmas do passado. Leitura mais que recomendada.
Conheça a autora Tine Cabral
Formada em Letras por paixão, em Psicologia por ganha-pão e iniciando a graduação em Filosofia por sede de conhecimento da razão. A Cor Encarnada é a sua obra de estreia.
Como foi seu primeiro contato com a literatura? E como tem sido sua trajetória?
Eu sou uma mulher de 45 anos, então a minha vivência escolar é diferente da atual. Eu fui aluna nos anos 80, era recém saída da ditadura, por isso tive uma educação bem quadradinha. E eu era uma criança mega-tímida. Não possuía amigos, passava recreios na biblioteca, meus amigos acabaram sendo os livros, e disso surgiu minha paixão pela literatura. Comecei pelos clássicos, na biblioteca tinha uma coleção chamada “Grandes sucessos”, lançada pela editora Abril, versão colorida. Comecei lendo Dom Quixote, de Cervantes, Os três mosqueteiros, de Dumas, Mulherzinhas, de Louisa May Alcott, passei a infância toda lendo. Havia muito incentivo por parte os meus pais, tanto que todo livro que demonstrava interesse eles me davam.
Havia feito faculdade de letras depois do colégio e logo após comecei a fazer psicologia, então durante a época dos estudos eu me esqueci do sonho de viver de literatura, mas nos últimos cinco anos vendo alguns posts nas redes sociais e canais do YouTube, a chama reascendeu. Ouvi tudo que estavam falando sobre publicação independente e me perguntei: "por que não?" Então, mesmo depois dos 40 eu sentei e comecei a escrever ficção. Levei vários anos pra conseguir, mas lancei em setembro de 2020 “A Cor Encarnada”. A pandemia serviu para eu conseguir terminar meu livro e aí lancei o ebook.
Qual a sua relação com os gêneros que trabalha?
Não sabia que escrevia terror de verdade até ver as pessoas me dando feedback, assustadas com o que liam de mim, quando comecei a escrever “A Cor encarnada” eu só pensei: “Quero escrever um livro de vampiros, mas que seja realista”, então foi natural. Eu só descobri que era terror depois de publicado, enquanto eu escrevia, achava que era realismo fantástico. A única coisa de fantástico que tinha era a vampira que não envelhecia, mas o cenário era inspirado em algo real. A pesquisa histórica me exigiu bastante. Não me sentia segura de escrever sem me amparar, pois queria escrever uma história que se passasse aqui no Ceará, sabe?
Quais são as temáticas e elementos recorrentes em suas narrativas?
Acho que uma coisa que eu gosto de falar nas minhas histórias é da questão regionalista e não pode faltar uma pitada de crítica social, é uma característica minha mesmo, sem militância, apenas nas entrelinhas, gosto do sutil, não de apontar o dedo na cara, mas de dar aquela uma cutucada, tanto que em meu conto na revista Ledos Medos V, eu criei uma bruxa que era benzedeira no sertão cearense.
Também procuro buscar trabalhar com personagens comuns e mostrar que o antagonista é o mundo. O inimigo nas minhas histórias geralmente é a própria sociedade.
Comenta um pouco sobre sua experiência com as revistas que participou?
Acompanho a revista Ledos Medos desde sua primeira edição. Ela só sai três vezes por ano e eu gostei muito do que havia lido. Não foi minha porta de entrada para o terror, porque já tinha lido o Quarto 502 da M. Sardini, co-fundadora da Ledos Medos. Então eu já era fã do projeto das garotas e a partir do Instagram fui convidada para escrever um conto para a Ledos Medos. Fiquei feliz porque hoje em dia qualquer pessoa pode submeter textos e esperar ser selecionada, mas no meu caso foi por convite, aí fiquei mega feliz de ter sido escalada para a edição sobre bruxas, pois é escrita toda por mulheres, tem dois artigos muito bons sobre terror feminista e casa com meu estilo.
A revista Histórias de lugar nenhum nasceu de um grupo de escrita no WhatsApp, onde os membros promoviam desafios semanais, tínhamos que desenvolver 500 palavras sobre um tema, só pela prática mesmo, daí nessa brincadeira surgiu a ideia da revista. Acabou sendo um trabalho de parceria, então, todo mundo tinha seu papel, e além dos desafios periódicos, também tinha um investimento para que a revista aparecesse mais, fazíamos reuniões de pauta, tudo bem organizado.
Quais autores e obras te influenciam?
Acredito que seja impossível ser escritor sem se permitir ser influenciado por outros, No Hibisco Roxo de Chimamanda Ngozi Adichie e A Cor Púrpura de Alice Walker assimilei a vivência da mulher negra. De maneiras diversas, Jorge amado me influencia, sempre gostei muito do regionalismo e realismo dele.
Costumo dizer que Vida Secas, de Graciliano Ramos é um tapa na cara, mas A Fome de Rodolfo Teófilo é um soco no estômago. São histórias que giram em torno do mesmo tema, mas Rodolfo é mais intenso e realista. Eu gosto de História, sabe? E Rodolfo escreveu sobre a seca de 1977, coisa que eu retratei também.
Resenha feita por Cíntia Alves
Edição de imagens por Filipo Brazilliano
Edição e revisão de texto por Elisa Fonseca
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