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Foto do escritorPerpétua Revista

A espada foi a lei, por Mateus Cantele

Uma pena os humanos viverem tão pouco, pois, se estivesse vivo, Merolyn iria pagar por todos os anos que ele me deixou preso nessa pedra. Onde já se viu prender a maior arma de destruição que esse mundo já conheceu em uma simplória pedra? Eu me vingaria, derramando seu sangue na terra, lentamente, me deleitando com o gotejar de sua vida no solo. Tive muito tempo para pensar nisso e tenho certeza que essa seria a melhor forma de me vingar daquele feiticeiro mequetrefe. Eu só preciso sair daqui.


Colagem digital produzida por Maitê Mendonça

Para completar o meu calvário, o sacripanta ainda teve a pachorra de me prender no meio de uma floresta densa e perigosa, o que dificulta e muito alguém chegar até aqui e me tirar dessa prisão lítica que me envolve.


Os primeiros meses foram os mais difíceis. Sentir o líquen subir pela minha lâmina imaculada foi de um asco tremendo. A repugnância da primeira mossa em meu letal fio me acometeu por anos, somando a tristeza das primeiras marcas de ferrugem por todo o meu ser. Confesso que meu estado atual é deplorável. Resta em mim uma pequena fagulha da gloriosa espada que um dia fui. Uma lâmina temida por todos e que provou a carne de diversos povos. Ah, que saudade daquela época. A vida hoje não poderia ser mais tediosa, nessa clareira simples onde ninguém consegue chegar. Ou quase ninguém.


Lembro-me do primeiro desafiante. Era um guerreiro alto, corpulento e que tinha uma cicatriz horrenda em seu rosto, que o deixava com um permanente sorriso sádico. Ele se aproximou e o cheiro de sua ganância me inebriou. Aquele deveria ser o servo que me empunharia. Um homem de coração concupiscente que me levaria a combates sangrentos e tomaria o mundo para mim. Já conseguia sentir o seu toque retirando-me da minha clausura de pedra e libertando a magia que restauraria essa forma decadente na minha glória de outrora.


Ele se posicionou. Testou o cabo. Firme é óbvio. Minha empunhadura é excelente mesmo com o couro carcomido. Puxou e eu já comemorava. Nada aconteceu. Tentou mais algumas vezes até cair de exaustão. Maldito Merolyn. Não era ele.


O guerreiro, apesar do sorriso eterno, não parecia nada feliz. Praguejou e chutou a pedra que me prende. Senti uma pontada de humor ao vê-lo xingar segurando o pé dolorido. Um pequeno conforto no meio do meu decadente estado. Ouvi gritos na floresta. O homem se assustou, olhou para os lados desesperado e fugiu. Nunca mais o vi.


Às vezes chove aqui na clareira. No início eu detestava, pela possibilidade de enferrujar minha lâmina, estragando minha empunhadura, e se existe algo real nesse mundo é que a água tem um grande potencial de erosão. Exceto pela maldita pedra que o energúmeno do Merolyn me prendeu. Essa está viçosa como no dia em que fui preso a ela. A verdade é que depois de tanto tempo, a chuva se tornou um alívio, pois lavava parte da poeira repugnante que era depositada sobre mim. Passou a ser um momento importante. Quase significativo.


Em certo dia de chuva, o segundo desafiante apareceu. Era uma mulher. Tinha nos olhos azuis um sofrimento urgente e, como o "Guerreiro Sorriso", olhava para os lados o tempo todo. Presumi, na minha inteligência irrefutável, que ela estava sendo perseguida.

"Olhos Azuis" viu em mim uma fagulha de esperança. Tentou retirar-me da pedra e, por um momento, quis que ela conseguisse para poder ajudá-la. Não por ser bondoso, não me entenda mal, mas no fundo senti que ela estava presa como eu. Presa em uma realidade repulsiva que odiava. Talvez o tempo preso aqui tenha amolecido meu metal. Ela segurou na empunhadura, puxou com toda força e nada aconteceu.


Depois de mais duas ou três tentativas, "Olhos Azuis" voltou seu olhar marejado para a floresta. De lá, dois bandidos saíram brandindo suas armas. Era o fim para ela. Talvez, por isso, ninguém esperou o salto magnífico do lobo branco que surgiu como o luar. O gigante de pelo brilhante atacou impiedosamente os bandidos, dilacerando a carne e derramando o sangue deles no solo. Fui tomado por um júbilo que só a chacina poderia me proporcionar.


O lobo místico olhou para a mulher e os olhos azuis das duas criaturas se cruzaram num momento de entendimento e gratidão. Ambos tomaram caminhos diferentes e eu fiquei novamente só.

Faz tanto tempo desde que "Olhos Azuis" tentou tirar-me da pedra, que eu mal me lembro do seu rosto. Parando para pensar, também não me lembro mais da cor que minha bainha tinha ou dos detalhes de minha empunhadura. Mas isso não importa. Eu nunca vou sair daqui. Estou fadado a ficar preso nessa pedra desgraçada, conversando com minha própria existência até o fim dos tempos. Tudo por culpa daquele mago filho da pu...


ESPERA.


Tem alguém vindo.

Não posso acreditar no que está diante de mim! Um menino! Maltrapilho, sujo e fétido. Mas um menino! O olhar dele me encontra e com passos lentos ele se aproxima. Será hoje o dia em que serei liberto?


Ele segura a empunhadura, desengonçado, sem firmeza. Desse jeito você não vai conseguir me puxar, rapaz! Seus pés estão tortos e os braços são finos como palitos. Ele não vai conseguir. Senti uma força pequena sendo aplicada em minha existência. Fraco demais. Ele não vai conseguir.


Conseguiu.


Senti a magia voltar a fluir por minha estrutura, tornando minha lâmina brilhante, meu fio mortal e minha empunhadura orgulhosa. Estava de volta à minha glória.

— FINALMENTE estou livre da minha prisão!!!

— Eita! Você fala! — O menino se surpreende quase me jogando ao chão.

— É claro que falo, ser ignóbil! Nunca ouviu falar em Régis Marques, a lâmina da crueldade, a maior arma de destruição que já existiu?

— Se ouvi, não me lembro — disse numa mistura de pavor com descrença.

— Isso não importa, mancebo. Eu sou, como pode perceber, uma espada mágica, posso te fazer conquistar reinos. Qual o seu nome, meu rapaz?

— É Jorge. Só Jorge. Filho de Jeferson. Neto de Jefer, o carpinteiro.

— Um camponês?! Maldito Merolyn! Bom, isso não importa, com meu poder, tudo tem solução. Me diga Jorge, o que você deseja?

— Estou com fome. E minha mãe está doente…

— Podemos resolver isso! Eu posso te ajudar a conquistar tudo que você precisa! Juntos vamos dominar toda a…

— Já sei! — Ele ousa me interromper — Eu vou te vender e ficar rico!

— O quê?!


***


— É uma espada melhor do que o comum, mas não é pra tanto — mentiu o maior ferreiro da cidade — Como sou gente boa, vou te dar 300… Não. 350 moedas de ouro e 10 de prata. Fechado?


Os olhos do menino brilharam de emoção. Era dinheiro suficiente para que a família toda vivesse tranquilamente por toda uma vida. Uma vida simples, onde ninguém passa fome ou morre de doenças por falta de tratamento.


— Fechado! — Sorria o menino.


Jorge e sua família viveram uma vida feliz e tranquila.


Régis Marques, a maior arma de destruição que já existiu, nunca mais falou com humano algum.


Conheça o autor Mateus Cantele


Mateus Cantele é escritor, professor de história e um servo fiel de sua criatividade. Encontrou na escrita o espaço para mostrar um pouco do mundo que reside em sua cabeça, tentando fazer isso (quase) todo dia com 480 caracteres ou menos.
Colagem digital produzida por Naiana íris (aponteparaoser)
Quando foi seu primeiro contato com a literatura?

Minha mãe tinha o ótimo hábito de ler revistas da Turma da Mônica desde meu nascimento. Graças a ela eu tive muita facilidade na minha alfabetização e criei gosto pela leitura . Sempre fui um criador de histórias. Desde a infância eu desenhava "quadrinhos", escrevia "roteiros" para filmar com os bonequinhos. Ter vontade de escrever foi só uma consequência desse desejo de contar histórias. A ideia de ser escritor começou em 2012, quando comecei a escrever o meu livro, entretanto, foi só em 2019 que eu mergulhei de fato na intenção de profissionalizar a minha escrita. Antes tarde do que mais tarde!


Onde você tem publicado as suas histórias?


Tenho alguns contos no Medium e no Wattpad, mas no momento estou focando meus esforços em concursos e editais. Dentre as histórias publicadas nas plataformas citadas, gosto bastante de "O crime da rua Coronel Amaro" e "É tudo questão de posicionamento" .


Que tipo de histórias você conta?

Além da ficção científica. Existem dois gêneros que por mais que eu tente fugir, acabo voltando para eles: o terror e a aventura. Fazendo um panorama geral são os gêneros que eu mais gosto de escrever. Como cresci sendo influenciado pela cultura de anime/mangá, eu gosto muito de fazer os(as) protagonistas se esforçarem para conquistar seus objetivos. Sempre que posso faço meus personagens buscarem superar seus limites.


Que aprendizagem você irá levar para a vida a partir da sua experiência com literatura?

Ninguém nasce escritor, ou qualquer outra coisa. Você se torna, pouco a pouco, aquilo que busca ser. E não existe cedo ou tarde para trilhar esse caminho. Ser escritor, ou qualquer outro sonho, não é questão de genialidade, de talento, mas de esforço.


Como funciona seu processo de escrita?

Eu costumo utilizar dois métodos de escrita: O de Brainstorm com lista de palavras e o método floco de neve. Mas na maioria das vezes a história sequestra minha mente e só me larga quando termino de escrevê-la. Método que eu chamei carinhosamente de História Encosto.


Cite alguns autores e obras que corroboram com a construção das suas narrativas.

Patrick Rothfuss com certeza foi a maior influência na minha forma de escrita. O nome do vento é o livro que mais me inspirou a escrever. Além dele, "As crônicas de Nárnia" foi um livro que me mostrou que histórias simples podem ser tão cativantes quanto as mirabolantes e complexas.


Conta uma fofoca pra gente, quais são os seus “vem aís”?

No meu perfil do Instagram @autormateuscantele eu publico conteúdo literário e microcontos e também escrevo resenhas aqui na revista Perpétua. Finalmente lançarei meu livro que escrevo desde 2012, e pretendo, mais para o final de 2022, publicar uma coletânea de contos. Também estou nessa temporada da Faísca, Mafagafo, e da Pulpa, Escambau, meus continhos devem sair em breve.


Links do autor Instagram / Twitter

Entrevista por Filipo Brazilliano
Edição e revisão por Elisa Fonseca
Arte de vitrine por Maitê Mendonça
Colagem especial do autor por Naiana Íris

Se você é escritor(a) e gostaria de ter um conto publicado em nossa revista, envie email para perpetuatendimento@gmail.com






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