Por Rubens Duprat
Cidade Invisível é uma série baseada numa ideia dos escritores Raphael Draccon (@raphaeldraccon) e Carolina Munhóz (@carolinamunhoz), que, atuando também como produtores consultores, repetem a parceria criativa estabelecida na série O Escolhido, presente na Netflix. Casados há 9 anos e morando em Los Angeles desde 2015, ambos estão entre os principais nomes da literatura fantástica brasileira, sendo ele autor da trilogia Dragões de Éter e ela de O Inverno das Fadas e O Reino das Vozes que Não se Calam, entre outros best-sellers.
O criador da série é Carlos Saldanha (@carloshsaldanha), que conquistou uma sólida carreira internacional. Responsável pelos maiores sucessos da Blue Sky Studios, o que inclui A Era do Gelo, Rio e O Touro Ferdinando, o animador, diretor e produtor tem tomado para si a missão de divulgar a cultura brasileira pelo mundo, e tem sido bastante eficiente nisso. Sua mais nova empreitada é a série da Netflix Cidade Invisível, da qual também é showrunner. A série, um misto de policial com fantasia sombria, apresenta para o mundo as lendas do folclore brasileiro. Estreando em 5 de fevereiro, no mesmo dia ficou em primeiro lugar no Brasil e, em pouco tempo, entrou para o top 10 em mais de 60 países.
Seguindo os passos de séries de fantasia para adultos como Grimm e American Gods, Cidade Invisível conta a história de Eric, um detetive ambiental que, investigando a relação entre a morte de sua esposa e o cadáver de um boto cor-de-rosa encontrado na praia, pouco a pouco se vê envolvido com entidades mitológicas que nunca imaginou existirem de verdade. É quando ele descobre que, num mundo em que a natureza está sendo engolida pela urbe, o mesmo está acontecendo com seus protetores.
Eric é vivido por Marco Pigossi (@marcopigossi). Ex-nadador profissional, Pigossi fez várias novelas na Globo, com destaque para Caras & Bocas, em que interpretou um personagem cômico, seu maior sucesso na emissora. Em 2018 trocou a Globo pela Netflix, estrelando a série australiana Tidelands, sobre sereias, e em seguida a espanhola Alto Mar. Contracenando com ele em Cidade Invisível, vale destacar a presença do ator veterano José Dumont (@atorjosedumont), figura constante em obras com temática sertaneja. É sempre bom vê-lo mais uma vez nas telas.
As Lendas
Cidade Invisível vai fundo nas raízes de algumas das mais famosas lendas brasileiras e usa de criatividade para preencher as lacunas deixadas pelo folclore, com flashbacks nos inícios de episódios para mostrar como cada uma se tornou o que é. Na versão adotada pela série, todas as lendas eram humanas antes de se tornarem entidades. Mesmo as que nunca tiveram narrativas de origem ganham uma partindo desse conceito.
Identificar cada uma das lendas entre os personagens é uma das diversões de Cidade Invisível para quem tem algum conhecimento do folclore brasileiro, mas a série é igualmente interessante para quem não tem esse repertório, pois é uma chance de conhecer mitos diferentes das fadas e elfos do folclore anglo-saxônico que estamos habituados e ver em produções de Hollywood.
As lendas que aparecem na primeira temporada, devidamente adaptadas para o cenário em que se encontram, são as seguintes:
Boto cor-de-rosa: Diz a lenda que o mamífero aquático é capaz de se transformar num homem sedutor, sendo responsável por engravidar moças solteiras e em seguida abandoná-las. Vivido por Carlos Alberto Riccelli no marcante filme Ele, o Boto, de 1987, o personagem tem grande importância na trama de Cidade Invisível, em que é interpretado por Victor Sparapane (@victorsparapane1), vindo de novelas bíblicas da Record.
Cuca: Descrita por Monteiro Lobato no livro O Saci como uma criatura com cara de jacaré e garras de gavião, a Cuca foi imortalizada no imaginário popular por meio da adaptação da coleção O Sítio do Pica-Pau Amarelo pela Globo, em que é representada como uma jacaroa antropomórfica loira. Esse visual foi usado, com poucas alterações, tanto na versão produzida entre 1977 e 1986 quanto na refilmagem de 2001, que teve 7 temporadas. Apenas no último ano houve uma mudança radical na personagem, que passou a ter rosto humano mas manteve as escamas pelo corpo e os dentes de jacaré.
Já em Cidade Invisível, a mudança é muito mais radical. Desde o trailer, a personagem é o grande destaque da série. Com forma inteiramente humana, ela é vivida desta vez pela bela Alessandra Negrini (@alessandranegrini), que aos 50 anos ainda tem quase a mesma aparência que tinha aos 25, quando viveu a personagem-título da minissérie global Engraçadinha: Seus Amores e Seus Pecados (intencionalmente ou não, um personagem chega a chamar atenção para isso ao mencionar que a Cuca não envelhece). Sem relação com jacarés, a Cuca de Cidade Invisível é, em vez disso, relacionada a borboletas, sendo capaz de se transformar no inseto e, nessa forma, pousar nos olhos das pessoas para fazê-las dormirem, podendo ainda entrar nos sonhos delas e manipulá-los afim de se tornarem pesadelos. Essa caracterização é baseada na lenda original da Cuca, registrada numa das cantigas de ninar mais conhecidas:
"Nana, neném, que a Cuca vem pegar, papai foi pra roça e mamãe foi trabalhar."
A lenda vem da Península Ibérica, onde, em uma de suas versões, era chamada de Coca ou Coco e, embora sem forma definida, era representada por uma abóbora semelhante à de Halloween, com um rosto esculpido e uma vela acesa dentro. Assim como o Bicho-Papão, era usada como ameaça para fazer com que as crianças se comportassem, pois, se fossem desobedientes, a criatura saberia e viria comê-las ou levá-las para um lugar sem volta. No Brasil, por influência da cultura africana, passou a ser vista como uma preta velha, já que, no idioma mbunda, o termo cuca é usado para se referir a uma avó. E, de velha, logo passou a ser vista como uma típica bruxa velha (que é como ela é retratada no filme O Saci, de 1953), com poderes como o de assumir a forma de bichos como a borboleta ou a mariposa para entrar nos quartos das crianças. Para completar a caracterização, Cidade Invisível baseou-se também no mito de que o pó que a borboleta solta pode causar cegueira se cair nos olhos, substituindo a cegueira pelo sono.
Saci-Pererê: Também popularizado por Monteiro Lobato na literatura e, nos quadrinhos, transformado em protagonista por Ziraldo em A Turma do Pererê, o saci é uma mistura das diversas lendas europeias de pequenas criaturas travessas, como os trasgos do folclore português, com o similar çaa-cy perereg ("olho ruim saltitante") dos índios guarani. Na lenda original, não existe apenas um saci, e sim vários, mas, em Cidade Invisível, a julgar pela primeira temporada, cada lenda consiste em apenas um indivíduo. Até existe uma variação da lenda em que o saci é um indivíduo, que teve uma perna amputada durante uma luta de capoeira, mas sua origem criada para a série lembra mais a do Negrinho do Pastoreio. Ele é vivido por Wesley Guimarães (@owesleyguimaraes), do filme Tungstênio e de outra série da Netflix, Irmandade.
Curupira: Caracterizado por ter os pés virados para trás e proteger de caçadores os animais da floresta, o Curupira é uma das lendas mais antigas do Brasil. Segundo estudiosos, é proveniente dos extintos nauas, povo indígena da região do Acre, podendo ainda ter relação com o chullachaki dos incas. Na série, é vivido por Fábio Lago (@fabiolagooficial), do filme Tropa de Elite e de novelas globais como a já citada Caras & Bocas.
Iara: Também chamada de Mãe d'Água, a Iara descende da lenda europeia das sereias, com alguma influência do folclore indígena. Seu nome vem do tupi ig iara ("senhora das águas"). Na série, ela é vivida por Jessica Córes (@coresjessica), da minissérie global Verdades Secretas.
Tutu Marambá: Assim como a Cuca, o Tutu pertence à linhagem dos papões, não tem forma definida originalmente e tem sua lenda registrada em cantigas de ninar:
"Desce, Tutu, de cima do telhado, vem ver se essa menina dorme um sono sossegado"
Seu nome vem do termo quitutu do idioma africano quimbundo, que significa papão. Não é tão conhecido quanto as lendas acima, tanto que grande parte do público de Cidade Invisível o confundiu com o Boitatá, o Caipora ou mesmo o Tapiré-Iauara, entidade em forma de anta que patrulha a floresta amazônica e cresce até o tamanho de uma vaca para atacar invasores, com um cheiro tão forte que pode fazer a sombra de uma pessoa fugir do corpo.
Considerado irmão do Bicho-Papão e do Boi da Cara Preta, o Tutu da lenda é, na verdade, uma sombra disforme que vive à espreita das crianças desobedientes, principalmente as que não querem dormir, para devorá-las. Numa variação da lenda, visto como uma criatura forte e briguenta, é associado ao porco-do-mato devido à semelhança de seu nome com caititu, outro nome do animal. Essa variação foi a que inspirou o Tutu da série, vivido pelo músico Jimmy London, da banda punk Matanza e do programa Pimp My Ride Brasil, perfeito para o papel, aliás.
Corpo-Seco: Outra lenda pouco famosa, o Corpo-Seco é uma pessoa que fez tanto mal em vida que, ao morrer, não foi aceito nem pelo Céu, nem pelo Inferno, e foi cuspido pela terra, sendo condenado a vagar como um corpo que, não sendo nem morto, nem vivo, não apodrece mas também não se alimenta, sendo por isso ressecado. Seus cabelos e unhas, no entanto, continuam a crescer, e por isso ele é também chamado de Unhudo. Numa variação da lenda, corpo e espírito se separam, sendo o espírito chamado de Bradador por estar sempre gritando, o que lembra a lenda irlandesa das banshees. Na série, o personagem é bastante diferente da lenda original. É vivido por Eduardo Chagas.
Juro que Vi
Cidade Invisível não é a primeira produção competente a abordar as lendas brasileiras. Entre 2003 e 2009, a MultiRio produziu 5 excelentes curtas de animação com esse tema sob o título Juro que Vi, em colaboração com alunos da Rede Municipal do Rio. Nos moldes das animações da Disney, os curtas ganharam vários prêmios nacionais, participaram de festivais internacionais e foram exibidos em diversos canais educativos. Com exceção da Cuca, do Tutu Marambá e do Corpo-Seco, cada lenda vista em Cidade Invisível teve sua história contada também em Juro que Vi, que está disponível no YouTube.
De qualquer modo, com o alcance mundial da Netflix, Cidade Invisível é sem dúvida a obra que deu mais visibilidade ao tema até hoje, e merece o grande sucesso que está tendo. Com 7 episódios de 35 a 40 minutos em sua primeira temporada, a série já teve confirmada uma segunda, ainda sem data definida. Eu juro que vou ver.
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