Texto por: Madu Moreschi
Fotografia por: Daniel Sena (@danielrsena). Yaku com suas peças originárias talhadas em sementes de abacate.
19 de Abril é conhecido no Brasil como o dia nacional da consciência indígena, ou O Dia dos Povos Indígenas. Esse dia foi escolhido, pois marca a reunião de diversos líderes indígenas de países como: Argentina, Chile e México durante o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano em 1940. Outra data destina um olhar especial aos povos ancestrais, o dia 09 de agosto. Essa, de cunho internacional, foi decretada pela ONU em 1995. É nesse sentido que a Perpétua, como uma revista aberta a todos os artistas independentes, trouxe para celebrar essa data uma matéria recheada de dicas valiosas com filmes e livros excelentes, protagonizados por artistas indígenas. Além disso, trazemos uma entrevista com o multiartista argentino do povo Runa Simi, estabelecido no norte do Brasil a cinco anos, Yaku (@bichocaminante).
Esperamos que o olhar para os artistas nativos da América Latina, em boa parte colocados a margem da sociedade, aproxime as vivências das diversas realidades e suas variedades étnicas. O propósito maior dessa matéria é a preservação da memória e a reflexão crítica sobre a relação entre o passado e o presente, resquícios da cultura colonizadora europeia.
Literatura indígena
A literatura indígena só foi possível no Brasil depois que iniciativas do governo sobre as instituições de ensino público indígena espalhados pelo território nacional foram implementadas. É importante ressaltar que o Brasil possui mais ou menos 206 etnias diferentes. Cada qual contempla sua própria cultura, religião e língua. O português é a segunda língua matriz desses povos. Para que suas pautas saíssem do âmbito exclusivo de suas comunidades e adentrassem outras realidades em forma de palavras orais e escritas, foi preciso que outro tipo de violência acontecesse: líderes indígenas precisaram sair de suas comunidades e criar pontes de apoio com outros países, de modo a fazer um trabalho de cooperação internacional. Ou seja, eles se tornam ativistas ambientais.
Para isso, esses líderes indígenas se apoiam em artistas ou comunicadores brancos. Passam a usar ternos, pegar aviões, assim deixam de ter contato com seu povo e a natureza por algum tempo. O resultado é sofrido em forma de discriminação, mesmo explicando os direitos indígenas de forma clara e articulada em conferências internacionais pelo mundo. Assim é a realidade do xamã Yanomami, Davi Kopenawá co-escritor de um dos livros considerados uma bíblia indígena, ou melhor, uma jornada espiritual, "A Queda Do Céu: as palavras de uma xamã Yanomami", junto com o escritor Bruce Albert.
"É por isso que eu gostaria que eles ouvissem as minhas palavras através dos desenhos que você faz delas, para que penetrem em suas mentes. Gostaria que após tê-las compreendido, pensem: os Yanonami são diferentes de nós, no entanto, as suas palavras são retas e claras. Agora entendo o que eles pensam (...)". - Davi Kopenawá.
Já no começo do livro, Davi Kopenawá fala que a língua escrita não é a mais importante para o seu povo, assim como para os outros povos. A história e a cultura são passadas oralmente entre os indígenas de todas as etnias. Portanto, o que se segue é uma trajetória rica de informações sobre o povo Yanomani, suas crenças, cultura e mitologia a partir de uma narrativa empírica e quase oral; algo que é impossível de se ver nas escolas brasileiras e quiçá nas universidades. Além disso, Kopenawá apresenta tudo do seu ponto de vista, contanto um pouco da sua própria história como um xamã.
O ponto chave do livro trás a relação com o título, ou seja, o que é "A Queda do Céu". Para os povos indígenas a floresta é o céu que já foi caído. Os xamãs são exatamente as pessoas que trabalham para que o céu não caia de novo. Para isso, eles precisam da ajuda dos Shappire (para o povo Yanomami) e Encantados (para uma leitura geral de todos os povos indígenas), que para nós seriam como se fossem os espíritos da natureza. Nesse sentido, os Shappires só aparecem para os Xamãs, e Davi Kopenawá nos explica mais como eles se parecem fisicamente e como é importante preservar a natureza para que os espíritos equilibrem a vida na terra. É um livro realmente imperdível e bastante necessário. Fica a recomendação.
A segunda recomendação dessa lista é o livro " O Amanhã Não Está à Venda" do jornalista, ativista ambiental e uma das maiores referências na luta dos povos indígenas Ailton Krenak. Diferente da recomendação anterior, esse livro é bem curtinho e pode ser lido em mais ou menos quinze minutos. Ele está disponível de forma gratuita para os assinantes do Amazon Kindle e já possuí a sua versão gratuita em áudio livro no YouTube. Portanto, não há desculpas para não ler essa obra fantástica e tão necessária nos dias de hoje.
"Temos que abandonar o antropocentrismo; há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário. (...) O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise". - Ailton Krenak
Esse livro é bastante atual em tempos de pandemia. Ailton começa o livro dizendo que cancelou todos os seus compromissos e que se encontra isolado com a sua família e o seu povo na aldeia Krenak, no médio do rio Doce. Ele diz que o que a humanidade está experienciando agora, com a Covid-19, é o que os indígenas sempre tiveram que conviver, com a doença dos brancos. Essa que mata apenas indígenas, os quais não possuem os anticorpos de uma vivência desequilibrada com o meio em que vivem. A preocupação maior é com as populações que lutam desde as invasões e colonizações para terem suas terras, ou melhor, casa, justamente demarcadas, para que a má gestão do povo branco não atinja aqueles que não tem a ver com o genocídio da natureza, ou seja, os povos da natureza esquecidos nas margens dos rios, sejam eles: caiçaras, indígenas, quilombolas, aborígenes, etc.
Partindo de um livro bastante urgente e atual, nós vamos para a terceira recomendação de leitura nesse abril indígena. Um livro que trabalha o resgate de uma história real, também bastante forte e atual, do autor indígena da etnia Potyguar(a) Juão Nÿn, com o título "Tybyra: Uma Tragédia Indígena Brasileira". Nesse livro de ficção o autor explora o primeiro caso de LGBTfobia com um nativo brasileira documentada no país.
Segundo Juão, o termo Tybyra, que leva o nome do livro vem do termo "Tibira", que na língua Tupi quer dizer literalmente "indígenas gays". A morte do indígena em questão foi documentada por um frade francês chamado Yves D'Évreux, em seu diário "Viagens ao norte do Brasil" e 1613 a 1614.
Para a sorte de vocês essa obra também está disponível gratuitamente para os assinantes Kindle. Ele possuí apenas 85 páginas e a leitura é bastante fluida e rápida. Com certeza, uma dica preciosa para completar a sua biblioteca.
Sinopse do Livro:
1614, São Luís do Maranhão, Brasil.
Preso à boca de um Canhão, prestes a ser executado por sodomia por soldados franceses, Tybyra, Indígena Tupinambá, relembra a própria vida e propaga suas últimas palavras como se, depois de relâmpagos, o som dos trovões saísse de sua boca.
Cinema indígena
Existe um tipo de cinema que vem sendo desenvolvido a muitos anos no Brasil e em outros países da América Latina, o chamado cinema ambiental ou socioambiental. Esse se tornou um gênero devido a sua constância e demanda, principalmente em festivais ao redor do mundo. A partir disso, muitos cineastas estrangeiros, principalmente europeus, têm vindo ao Brasil gravar documentários que exploram as facetas da Amazônia. Essa, que é uma riqueza incalculável pertencente, em sua grande maioria, ao território brasileiro e é habitada por povos indígenas de diversas etnias, incluindo aqueles conhecidos como povos isolados (sem contato com a sociedade circundante). Esses cineastas toparam com as histórias desses povos. Dessa forma, o cinema ambiental passou a ter uma abordagem característica, a cara e as falas dos povos indígenas, ou pelo menos era essa a intenção. O que acontece na verdade é um tipo de cinema onde quem tem a câmera e o roteiro na mão são homens com o pensamento colonizador e eurocêntrico. Como eles enxergam o mundo indígena é algo que deve ser muito bem examinado. Tem quem diga que isso é melhor do que nada. Será? O fato é que muitos dos filmes tem sim a sua carga de importância e deve ser visto. Mas uma realidade em que os próprios indígenas protagonizam as produções sobre a sua vivência tem surgido ainda a curtas passadas.
Esse é o caso do filme "Ex-Pajé" (2018) dirigido pelo até então roteirista, e agora diretor, Luiz Bolognesi, marido da conhecida diretora Lais Bodansky. que atua sumariamente através do cinema documental e socioambiental. Nesse projeto delicado e comovente o diretor teve o cuidado de chamar o pajé Perpera Suruí da etnia Paiter Suruí, que atua como figura protagonista do filme, para co-escrever o roteiro do projeto. Nada mais justo já que a história do filme ser sobre ele. Mais precisamente sobre um problema histórico que vem ganhando contornos bastante complexos desde 1500, a ação de missionários cristãos tanto católicos quanto protestantes na ação da evangelização forçada nas aldeias.
Em uma entrevista para o programa do Pedro Bial em 2018, Luiz Bolognesi fala como encontrou essa história:
Eu estava fazendo um documentário para o Canal Futura sobre jovens que mudam o mundo através da internet e acabei chegando aos jovens da aldeia Paiter Suruí. A terra deles é a última grande área de floresta de Rondônia. E eles mantêm essa área. Mas madeireiros entram o tempo todo, e garimpeiros, para roubar madeira. Os mais velhos a um tempo atrás enfrentavam isso com arco e flecha, e espingarda. Só que os madeireiros vinham com metralhadora. A mulecada agora vai com o GPS do celular, tira a foto dos caminhões marca a localização no mapa virtual e sobe a denúncia para as redes sociais. As ONGs americanas e europeias pressionam a polícia federal para agir. E eu fui fazer um documentário sobre isso. Mas lá eu perguntei "Cadê o Pajé de vocês, aqui?", ai um deles falou "Ex-Pajé". Ai vem o nome do filme.
Em conseguinte, podemos perceber qual é o enredo forte do filme. Paiter Suruí, é um pajé que é forçado não somente a ver o seu povo ser convertido a Igreja Batista através de um missionário alemão, mas é obrigado ele mesmo a se converter. Ele usa roupas desconfortáveis e se sujeita a humilhações como ser o zelador de uma igreja construída na aldeia. O fato ocorreu devido às narrativas manipuladoras dos missionários que fazem chantagens psicológica com todo o povo, dizendo coisas como "Os encantados de vocês são do demônio" ou "Se continuarem vocês vão para o inferno".
Em suma "Ex-Pajé" é um filme extraordinariamente delicado e necessário. Uma recomendação imperdível nesse mês da visibilidade indígena.
Seguimos para a segunda indicação de filme. Essa segue a linha de filmes com protagonismo indígena tanto a frente quanto atrás das câmeras. No entanto, a iniciativa e o desenvolvimento veio de um diretor estrangeiro.
Em 2008 o diretor italo-chileno Marco Bechis veio ao Brasil gravar o filme "Terra Vermelha", ou em inglês "BirdWatchers". Esse filme contou com um elenco de atores e atrizes em sua grande maioria indígenas da própria região do Mato Grosso, onde foram filmadas as cenas. O filme trata de uma comunidade de indígenas que vem sofrendo com uma sucessão de suicídios de jovens dentro da sua aldeia. Isso acontece devido ao avanço territorial das fazendas de gado e soja em suas terras, destruindo boa parte de sua terra sagrada. Perturbados pelas almas perdidas e revoltadas de seus parentes mortos, o cacique decide voltar para suas terras de origem. Ao chegarem encontram-na cercada por arame farpado e vigiada por homens brancos. Sem desistirem de sua casa, o povo originário monta acampamento em frente as suas terras e vivem de trabalho semi-escravo a beira da estrada. Esse filme pode ter sido gravado a doze anos atrás, mas essa realidade ainda existe em diversas cidades do Brasil, principalmente no Mato Grosso, onde a estimativa da FUNAI é que vivam mais ou menos quarenta e seis etnias indígenas diferentes. É nesse estado também onde podemos encontrar o maior número de fazendas de gado e soja do país.
O problema escancarado nesse filme é bastante doloroso e é mais de um. Tudo começa com a não demarcação das terras indígenas para os povos de direito, o maior problema político quando o tópico indígena chega ao senado brasileiro. Todo o resto é consequência: invasão, genocídios, estupros, suicídios, etc.
Esse filme ganhou destaque no Festival de Veneza e foi escolhido como representante ilustrativo sobre a questão da demarcação de terras no site do projeto internacional e independente da Survival Internacional, acerca de mais ou menos cem povos indígenas pelo mundo https://www.survivalbrasil.org/
Infelizmente em 2013 o ator indígena Ambrósio Vihalva, que interpretava o cacique e personagem principal na obra cinematográfica foi assassinado na entrada de sua comunidade. Segundo relatos, ele já vinha sofrendo ameaças a muito tempo, justamente por dizer ao mundo o que vinha acontecendo nas terras de seu povo.
"Isto é o que eu mais quero: a terra e a justiça… Vamos viver na nossa terra ancestral; nós não vamos desistir". - Ambrósio Vihalva.
Artistas indígenas
Agora que já enchemos as nossas prateleiras com várias dicas de livros e filmes, nada mais justo do que ouvirmos uma entrevista exclusiva com um multiartista originário para completar.
Entrevista com multiartista Yaku
Primeiro, se apresente para o público, quem é Yaku?
Meu nome é Nelson Lopez, mas todos me conhecem pelo meu nome artístico, Yaku. Eu sou um multiartista em descoberta, nascido em Salta, um estado Argentino que fica em meio as montanhas dos Andes, entre a fronteira com o Chile e a Bolívia. Em Salta eu sempre morei na cidade, na periferia, então eu sou um indígena em contexto urbano. Por isso que eu me identifico muito com indígenas periféricos. Minha vivência e minha arte vêm muito de lá. Meu trabalho consiste no resgate da cultura do meu povo. Eu pertenço ao povo Runa Simi, que é mais conhecido como Quechua. Esse último é o nome que os colonizadores espanhóis colocaram no meu povo durante as invasões, e com o tempo foi ficando. O meu povo é o que pertencia aos antigos Incas. Naquela época, o povo vivia por todos os Andes, desde a Argentina até o sul da Colômbia.
Me fala um pouco como seus trabalhos com a arte começaram?
Eu comecei fazendo faculdade de comunicação na Argentina, lá estudei de tudo um pouco: rádio, tv e até um pouco de audiovisual. No entanto, eu decidi parar por um tempo o curso depois que eu fiz uma viagem pelos países andinos, pouco tempo antes de me formar. Lá decidi mudar o rumo da minha vida e seguir meu sonho, que era a pintura. Nesse sentido, minha ligação maior na arte é pela pintura. Eu sempre pintei, desde pequeno. Eu tenho um irmão mais velho que se chama Victor. Ele sempre gostou de pintar, é um excelente artista. Ele pintava muito desde cedo. Sempre quando tinha algo na escola chamavam ele para fazer os desenhos, pois era muito habilidoso. Eu sempre me inspirei nele, almejando chegar ao seu nível. Mas eu não conseguia sozinho. Então, sempre me senti meio na sombra do que era ser pintor. Mesmo assim seguia fazendo trabalhos, ainda não profissionais. Assim, eu posso dizer que comecei a trabalhar profissionalmente com pintura, quando eu vim para o Brasil em dezembro de 2017. Aqui eu me liguei muito mais com a pintura profissional. Primeiro eu comecei com desenhos em papel, depois sai do papel e fui para a parede e da parede eu fui para o tecido e agora pinto de tudo. Pinto tudo o que dá para pintar.
De onde veio o seu nome artístico Yaku?
O meu nome Yaku eu recebi em um sonho. É como a maioria dos indígenas recebem o seu nome. Nesse sentido, o meu veio quando eu estava dormindo ao pé de uma montanha no Peru, no ano de 2016. Naquele dia eu desejava chegar no pico dessa montanha do território dos Andes. Nessa montanha tinha muita neve no cume. Eu fui sozinho. Pensei que conseguiria chegar sem equipamento, mas não aconteceu. Eu fiquei dormindo ao pé da montanha, em uma lagoa. Essa lagoa tinha uma água que vinha direto da neve que derretia do cume, fiquei pensando naquilo e dormi. Durante o sonho eu estava mergulhando no fundo da lagoa. Eu estava tranquilo quando de repente chegaram os espíritos das montanhas dentro da lagoa. Fizemos uma cerimônia no fundo das águas e me disseram que era pra eu ficar lá com eles, que eu pertencia as águas.
Pra mim esse sonho foi muito forte e muito importante. Na minha cultura, as pessoas recebem os nomes pelos sonhos ou porque outra pessoa mais velha na comunidade escolhe, geralmente o ancião. No meu caso, foi de um sonho meu. Uma conexão que tive com a natureza, ou o Deus máximo.
No dia seguinte, eu tomei um banho naquela lagoa. Fiquei pensando naquele sonho. Quando entrei na lagoa, eu senti os espíritos que estavam no sonho. Eles me puxaram para ficar com eles lá. Senti quase como se meu corpo tivesse se desintegrado por um momento, como se eu mesmo fosse a lagoa. Eu senti um pouco de medo dessa força e dessa energia. Mas depois eu consegui sair da lagoa e ir para um povoado perto. Contei a eles que havia dormido ao pé da montanha e tudo o que havia acontecido. O povo que morava em volta do lago me disse que o local era encantado. Que tinham muitos espíritos dando voltas por lá. Logo em seguida eu assumi esse nome, Yaku Urku, que significa “Água da Montanha”.
No seu portfólio podemos ver que você faz trabalhos com uma técnica chamada Lambe-Lambe, também com música Andina e cerâmica. Pode contar mais sobre isso pra gente?
Primeiro vou falar sobre a música. O meu povo sempre tocou instrumentos de sopro. Nesse sentido, como eu gosto muito do sopro e do vento eu introduzi essa relação na música a partir das minhas criações de apitos de cerâmica ancestrais e instrumentos do meu povo. De onde eu sou esses apitos eram muitos comuns, mas para os povos originários do Brasil é bem estranho. Já me aconteceu de chegar nas aldeias aqui do Brasil com os apitos e eles se surpreenderem com isso, por nunca terem visto. Mas os anciãos me falavam que seus avos costumavam sentar e tocar flautas, por isso eu acho que essa vivência se perdeu para as gerações mais novas. É por isso que, eu chegar lá e levar isso de novo é muito gratificante pra mim. Tem a ver com reconexão ancestral. Também a galera sempre está disposta a aprender junto. Porque não sou só eu que vou ensinar, eles também me ensinam muito. Eu sempre saio aprendendo muito nas aldeias.
Sobre os meus projetos de Lambe. É algo que eu venho trabalhando nesses últimos anos, assim como a fotografia. Nesse sentido o lambe consiste em imprimir imagens e aplicar essas imagens com um caldo de cola, como figurinhas. No meu caso eu tiro fotografias e depois faço impressões grandes delas, depois eu colo com a técnica do Lambe em espaços públicos. É mais ou menos o que eu tenho feito, ou tenho experimentado. Também faço essa técnica a partir dos meus próprios desenhos autorais feitos em papel.
Para além disso, agora eu estou me aventurando em projetos audiovisuais. Estou montando um documentário com a ajuda de outros colegas da área do cinema. Um deles é sobre a minha travessia recente de bike pelo nordeste do Brasil até Juazeiro do Norte. Eu vivi muitas coisas pelo caminho e acho importante compartilhar outras realidades. Também estou participando de outros documentários com a Amanda Palmer, uma amiga brasileira que é documentarista.
Quais os espaços onde podemos ver você trabalhando?
Meu trabalho está muito ligado aos povos indígenas. Eu me coloquei nessa posição de falar sobre a minha ancestralidade e ter mais em conta ela no cotidiano, não só na arte, mas na minha vida e no meu modo de pensar. Os projetos que gosto de participar são nas aldeias. Quando eu posso ir a uma aldeia eu sou muito feliz lá. Trabalho com crianças, adolescentes e até adultos. Com todo mundo. E gosto muito de ir a periferia. Algo que eu já fiz muito e não só no Brasil como em outros países. Esses dois espaços são bem confortáveis para mim, onde sinto que devo explorar meu trabalho. Ou seja, nos lugares onde as pessoas não querem ir fazer um projeto assim, por diferentes motivos. Onde nunca aconteceria um projeto artístico é onde eu gosto de ir. E é por isso que eu viajo muito, é assim que eu consigo conectar as pessoas a arte indígena, algo que até antes não tiveram. A partir da pintura, da música das artes plásticas. Assim, eu faço oficinas, para compartilhar com as pessoas.
Poderia dizer quais influências mais moldaram as suas obras?
Minha família e o meu povo. Eu sempre agradeci na minha vida quem fez parte do resgate da minha cultura. Minha vó Eugenia, meu pai, minha mãe. Mas principalmente a minha avó. Ela que carrega toda essa sabedoria ancestral, que tem passado para mim sobre o nosso povo Runa Simi. Ela, por exemplo que ensinou a falar um pouco da língua do meu povo. Eu não consegui aprender muito, mas tenho muitas lembranças dela me ensinando. Me ensinou sobre nossos rituais, nossos costumes, nossa culinária. Nossa conexão com a natureza, na medicina tradicional e natural. Eu sempre agradeço pela pouca vivência que tive com a minha vó, pois ela morreu quando eu tinha quinze anos. Ela foi muito importante para influenciar as minhas obras de resgate da minha cultura.
Algum artista que te inspira?
Pra mim todo mundo é um artista. Acho que sempre se cria essa coisa de que artista é aquele que pinta, que faz escultura e coisas relacionadas. Mas eu acho que todo mundo é artista em sua essência. Quando eu comecei mesmo a pintar, fazer escultura e performance, assim como, entrar no mundo da música andina, foi tudo muito empírico, me deixava guiar pelas coisas que sempre levei comigo a partir da minha ancestralidade. Acho que é isso que me inspira. Também me inspiro pelas pessoas que passaram pela minha vida desde criança. Sempre trabalhei muito desde pequeno. Meus pais também, os dois trabalhavam muito para que não faltasse pão em casa e já houve vezes que faltou. É nesse sentido que, sempre quando eu estou sem forças para criar eu penso naquele momento, de como minha mãe e meu pai me ensinaram a trabalhar desde pequeno, a fazer as coisas da casa. Isso vem muito da cultura indígena, suar para ganhar o que você tem. Eu não quero romantizar essas vivências, mas eu agradeço que meus pais, minha família e meus avos me ensinaram a trabalhar e a ser uma pessoa que luta pelo que quer. Então, acho que vem dai a inspiração.
Eu vi que você participou do projeto fotográfico de uma parente. Pode me contar mais sobre isso?
Esse trabalho foi em parceria com uma artista visual chamada Geviana (@indiilouro), que é uma pessoa que eu aprecio muito. Ela também é indígena e do Maranhão. Então, nos conhecemos e ela me chamou para participar de um trabalho muito bonito, que se chama Paridades. Esse consiste em fazer uma releitura a partir de colagens de fotografias dos indígenas atuais com fotos antigas dos nossos ancestrais. Ela faz essa conexão e essa ligação da história pela fotografia. E esse trabalho justamente ganhou o Prêmio Pipa, que é um dos maiores prêmios de arte moderna e contemporânea do Brasil. Eu gostei muito de ter sido um dos modelos nas fotos.
Por último, mas não menos importante, Yaku preparou um texto para vocês de modo a que percebamos que a arte é apenas uma ferramenta para o objetivo principal, que é a luta diária e não televisionada do massacre e do apagamento contínuo dos povos indígenas nas Américas.
Texto por: Yaku
"Faz dois anos que fui convidado para participar de uma palestra para crianças no dia que se comemora o dia do "índio" no Brasil. A diretora da escola falou comigo um dia antes e pediu pra eu levar minha roupa de índio. No dia da palestra a professora me pediu para botar o cocar, mas no dia da palestra eu fui com uma roupa “normal”. Eu expliquei para as crianças que os indígenas usam roupas comuns, também usam celular, computadores, e que as pinturas e o uso do cocar são utilizados apenas em momentos importantes ou em uma festividade da aldeia. Também falei que o uso do cocar não é do povo ao qual eu pertenço, por exemplo, eu sou Runa Simi (Quechua) dos andes, e nós não usamos muitos trajes considerados o padrão indígena. Ainda sim, existem diversos povos tanto no Brasil como em outros países e cada um usa as suas próprias vestimentas, seus próprios costumes e linguagem. Como um nação.
A minha aldeia foi a cidade, no quintal da casa de minha avó, na casa de meus pais. Foi ali onde eu recebi os ensinamentos do meus ancestrais e aprendi a plantar, usar as plantas medicinas, fazer nosso cultos, assim como, aprender o idioma do meu povo. Eu acho que esse e outros estereótipos devem ser quebrados. Ou seja, muitas vezes se diz que indígena só mora na aldeia, mas atualmente tem uma grande porção indígena morando nas cidades. Nós indígenas em contexto urbano temos que enfrentar outros tipo de perseguições, onde as pessoas da cidade se acham no direito de legitimar nossa identidade pelo uso de roupas, ou por estudar nas universidades, e também pelo uso de artefatos tecnológicos, etc. Os indígenas também estão nas cidades. E isso não é de agora. Desde início das primeiras cidades os indígenas estavam lá. Isso porque nós estivemos aqui nestas terras desde antes dos europeus e as nações de hoje e sempre vamos estar. Em todo canto posso ver nossos antepassados como parte da construção das cidades. Eles estiveram aqui em época de escravidão. Por isso que muitos acabaram morando dentro das cidades, mas especificamente nas periferias. E, mesmo assim, continuamos a manter nossos costumes, rodeados de diversas outras culturas que de algum jeito querem também o nosso apagamento. É por isso que precisamos entender os povos indígenas onde eles quiserem, como médicos, professores, e até presidentes. É uma reparação histórica. Como aconteceu com o povo negro. Nos integrarmos e ocuparmos espaços não nos faz deixar nossa cosmovisão, o que somos está no sangue e na vivência.
Por último, eu gostaria de dizer que muitos dos parentes dos povos indígenas que tive a oportunidade de conviver ao longo do território de Abya Yala do sul (América do sul) nestes últimos anos eu não poderei voltar a ver. Não neste plano. Porque estão mortos, sabe? Sim, morreram por serem eles mesmos e defenderem isso com a própria vida. Muitas mortes e poucos presos, até me arrisco a dizer que nenhum preso.
O genocídio sem fim sempre foi uma estratégia, sempre foi premeditado. O genocídio físico, terrenal e cultural, o mais grande dos genocídios sem nenhum culpado, os que trazem o sentido de culpa com suas religiões para estes territórios, mas nunca sentiram culpa nem pediram desculpas pelos atos de opressão. Quando isso vai acabar? Quando vamos ter paz? "
Para acompanhar os trabalhos do Yaku sigam ele no instagram.
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