Cá entre nós, a culpa foi minha. Minha e dos subterfúgios que uso para não ter de falar. Não iam entender, é como me justifico, embora a verdade seja outra: tenho medo de que me achem um místico ou um louco. Excêntrico, vá lá, até ajuda minha reputação como antropólogo, mas um passo além me lançaria no limbo dos desacreditados. E que passo gigantesco não seria admitir o que sei sobre os do lado de lá?
Não há nada de reprovável na minha vida. Durante a semana estou na universidade, às sextas pego o jipe e venho encontrar Fiona e suas surpresas. Porque ela sempre tem uma, em geral ligada ao seu trabalho de artesã. Ela recebe cada vez mais encomendas, por isso é raro que vá passar a semana no Rio, preferindo ficar no sítio, que batizamos poeticamente de Terra Sem Males. Aqui, ela trabalha no atelier, faz caminhadas com Wulf, nosso pastor alemão, e visita os vizinhos, com quem aprendeu umas receitas deliciosas.
Eu estava certo de que uma delas me esperava naquela sexta-feira. Na semana anterior, Fiona tinha me mostrado sua mais recente linha de fadas e gnomos, por isso imaginei que ela arranjaria outra novidade. E de fato arranjou, só que além do bolo de aipim havia algo inesperado: hóspedes. Mais uma vez ela havia deixado alguém acampar no nosso terreno. Isso sempre me incomoda, pois temo o que pode acontecer se saírem metendo o nariz por aí. Fiona me tranquilizou, mostrando que a barraca estava longe da nascente, onde fica o portal; mas o estresse voltou assim que bati os olhos na dupla.
Eles eram encrenca, eu tinha certeza. Não a garota, miudinha e educada, mas o cara era um cretino. Grosso, folgado, e deu para ver que tratava a menina muito mal. Ainda por cima ficou andando atrás de mim, fazendo perguntas sobre o jipe. A garota, por sua vez, foi ver o atelier e voltou fascinada. Ela chamou o cara para ir lá também e ele concordou, talvez por eles estarem ali de graça, mas quando os dois saíram do galpão nós o escutamos resmungar sobre “aquela bobajada de fadas e duendes”. Suspiramos, Fiona e eu, mas foi só, porque já estamos acostumados. E os do lado de lá também, achamos.
Ou melhor, achávamos.
De madrugada, fomos acordados pelos latidos do Wulf. Desci para ver e achei os dois lá fora, dizendo que tinham ouvido barulho, que achavam que tinha um bicho rondando a barraca. Encrenca, disse minha intuição, mas mesmo assim fui com o cara inspecionar o local. A menina ficou com Fiona, e esse foi o meu erro. Porque enquanto eu verificava que tudo estava em ordem, enquanto explicava ao sujeito que ele devia ter ouvido um quati ou coisa parecida, minha mulher afirmava que podiam ter sido os duendes, zangados com o que tinham ouvido o cara dizer no galpão. Fiona é assim, como eu disse, bem direta. Para ela tanto faz se acham que é maluca, e, aqui entre nós, é o que a maioria das pessoas teria pensado. Só que Carlinha – e agora eu tenho que dizer o seu nome – era mais sensível que o comum, e levou as palavras de Fiona a sério. E é claro que o cara não fez o mesmo – mas poderia ter saído pela tangente, dizendo que tínhamos checado o acampamento e estava tudo bem. Em vez disso, o imbecil chamou Carlinha de otária, e o pior ainda estava por vir. Pois quando a menina se defendeu, dizendo que Fiona concordava com ela, o sujeito se virou para mim e perguntou se eu não achava que minha mulher “também era ruim das ideias”.
Eu sou de paz. Em vez de acertar logo um murro naqueles dentes, dei a ele a chance de se desculpar, o que o cara não fez. Porque para mim dizer “foi mal aê” não é pedir desculpas, e sendo assim eu disse que ele teria de ir embora de manhã. O cara protestou, e como fiquei firme começou a baixar o nível, o que já era de se esperar; mas o que eu não esperava é que ele desse um safanão em Carlinha, quando a menina tentou intervir para acalmar os ânimos. Aquilo foi a gota d´água: parti para cima do infeliz, e só não o arrebentei porque ele se encolheu depois dos primeiros murros. Eu podia ter me arrependido se não fosse a visão de Carlinha, chorando nos braços de Fiona, com um hematoma se formando no rosto, que tinha batido contra a parede. Para resumir: o cara mereceu. Assim como mereceu que eu o obrigasse a desmontar a barraca e se pôr a caminho para Lumiar, de onde poderia pegar um ônibus de manhã. As coisas de Carlinha ficaram, assim como a própria garota, que encontrei ainda aos soluços. Fiona a confortou, dizendo que logo cedo ia ligar para os pais dela virem buscá-la, e, depois de um chá de camomila e biscoitos, nós a pusemos no quarto de hóspedes.
No sábado, quando levantei, Fiona me informou que já tinha ligado para a família da menina. Eles moravam numa cidade do norte fluminense e só iam conseguir chegar depois do almoço. Aí, enquanto eu tomava café, as duas começaram a conversar, e o que ouvi me deu um calafrio: Fiona estava falando de duendes. Não os bonitinhos, estilo europeu, que ela modela em resina, e sim os do lado de lá da nascente. O estresse aumentou quando ouvi o comentário de Carlinha: que não tinha visto, mas tinha sentido a presença dos duendes naquela noite. E que não queria ir embora sem conhecer o lugar onde era o portal para o mundo deles. Franzi a testa, mas Fiona disse que muitos de nossos amigos tinham ido até a nascente e nunca houve problemas. Eu também achava que não haveria – não causados de propósito –, mas, se você for a um lugar como aquele esperando ver coisas, pode ser que acabe vendo mesmo, e aí sim é que vêm os problemas. Fiona, porém, se dispôs a levar Carlinha até lá, e o que eu podia dizer? Que tivessem cuidado, mais nada.
Elas não levaram mais que uma hora no passeio. Quando voltaram, fiquei atento, mas para meu alívio não estavam falando do portal e sim de um rio onde Carlinha tomava banho quando pequena. Estava tudo bem, pensei, sem me dar conta de que uma das coisas que eles fazem é deixar a pessoa com nostalgia da infância. Minha tranquilidade aumentou quando os pais dela chegaram, aflitos, é claro, mas agradecidos por termos dado guarida à menina. Bem que eles a tinham prevenido contra aquele cara, que não estudava nem trabalhava e ainda fazia Carlinha mentir. Veja o senhor, nós pensávamos que ela estava no Rio, na faculdade, em vez disso estava aqui com aquele calhorda. Carlinha ouvia tudo quieta, e às vezes parecia distraída, mas achei que era só o jeito dela de escapar da situação. Eles partiram no fim da tarde, e, enquanto o velho Fiat arrancava levantando poeira, fiquei na varanda com Fiona, pensando: ainda bem que tudo acabou.
Mas não tinha acabado. Não vai acabar nunca. Porque nunca vou me esquecer daquele telefonema, na sexta-feira seguinte, no qual o pai de Carlinha me disse que ela estava sumida havia três dias. E que enquanto esteve em casa pareceu muito estranha, sonhando de olhos abertos e rabiscando num diário. Eles o leram para tentar achar alguma pista, mas tudo que havia eram desenhos: de pessoas esquisitas, que pareciam indiozinhos, e de cachoeiras. Ouvindo isso, compreendi na mesma hora – e, ao mesmo tempo que prometia avisar se soubesse de algo, já fui vasculhando a estante atrás da chave do jipe.
O deus que anda comigo é brincalhão. Mas às vezes é cruel. Naquela semana, Fiona tinha compromissos no Rio, e estava lá desde o domingo. Isso foi bom, pois nos descartou como suspeitos de sequestro; mas, por outro lado não posso deixar de pensar que, se Fiona estivesse no sítio, as coisas teriam sido diferentes. Como teriam sido diferentes se eu tivesse falado às claras, se houvesse alertado a menina sobre os do lado de lá e o efeito que eles exercem sobre as pessoas de mente impressionável e coração puro.
Nós estivemos no limiar do mundo deles junto à nascente. Olhamos para além do véu das águas e pedimos que nos devolvessem Carlinha. No entanto, sabíamos desde o início que pedíamos o impossível; que tivera uma escolha diante de si e decidira cruzar o portal.
E agora seu espírito, enfim liberto, navegaria em direção ao rio de sua infância, para lá da Terra Sem Males.
Conheça a autora
Ana Lúcia Merege é curadora de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Publicou pela Draco: "O Caçador", "Jack London e a Criatura de Salmon Pond" (com Allana Dilene) e os romances da série Athelgard, iniciada por "O Castelo das Águias", além de vários contos. É também organizadora de coletâneas como Excalibur, Medieval e Duendes. Mora em Niterói com marido e filha e tem paixão por viagens, mitologia e contos de fadas.
Qual o papel da literatura na sua vida, Ana?
Cresci numa casa cheia de livros, tinha um avô contador de histórias, então histórias lidas e narradas sempre fizeram parte do meu cotidiano. Comecei a escrever minhas primeiras histórias com 4 ou 5 anos de idade e até meus desenhos infantis eram ilustrações de histórias: vinham com legendas e balõezinhos.
Sempre fui uma leitora voraz, lia tanto livros infantis quanto adultos, tudo misturado. Eu podia estar lendo ao mesmo tempo Flicts e um livro sobre Treblinka e gostando de ambos, igualmente. Adquiri uma bagagem cultural que muito me influenciou como pessoa, porque a Literatura faz isso, ela te ajuda a refletir sobre a sua vida fora dos livros, a reagir, a encontrar conforto, ideias, soluções.
Por que decidiu trabalhar com o gênero Fantasia?
Eu sempre gostei muito de literatura de aventura, mitologia, contos de fadas, 1001 noites. Também gosto de literatura mais realista, mas talvez a existência de algo sobrenatural, transcendente, me ajude a aproximar minha narrativa e meus personagens dos deuses, dos heróis, dos arquétipos que povoam a imaginação de todos nós.
Entrei nesse nicho, dialogando com o público leitor desse gênero. Não foi de caso pensado, mas foi o que aconteceu.
Você é envolvida com outras artes?
Já toquei violão, fiz teatro amador e desenhei por um tempo, mas fui largando todas essas coisas à medida que se tornava necessário dedicar tempo e esforço para progredir. Eu empreguei esse tempo escrevendo, isso nunca parou, exceto por alguns períodos que duraram meses e corresponderam a épocas em que eu ou estava muito cansada com o trabalho diário ou estava grávida e com filha recém-nascida e só ficava lendo e cuidando de neném.
Nós fizemos uma pesquisa sobre suas obras e me deparei com uma curiosidade.
Qual foi a obra que você criou mais expectativa ao escrever? Como foi a recepção do público?
Foi O Castelo das Águias, primeira obra publicada pela Draco (se não contar um conto que saiu na coletânea Imaginários). Foi a primeira obra que eu fiz acompanhada por leitor crítico e editor e sofreu mudanças com base nas leituras deles e na qual eu tinha uma noção de quem seria o público-alvo e o que gostariam de ler. Também era o primeiro de uma trilogia. Eu esperava que fosse ter mais repercussão, vender mais, mas depois fiquei conhecendo melhor o mercado de livros do gênero e compreendi que era um trabalho para vários anos. Quanto às críticas, foi mais ou menos como eu esperava: muitas pessoas acharam um trabalho legal, algumas acharam maravilhoso e outras tantas não curtiram.
Você chegou a criar um universo compartilhado?
Pode-se dizer que sim. Athelgard é um universo no qual decorrem várias histórias minhas. Tem a trilogia formada por "O Castelo das Águias", "A Ilha dos Ossos" e "A Fonte Âmbar" e outros livros mais curtos e contos. É um universo no qual só eu escrevo, fora algumas fanfics de outros autores. É um universo recorrente, várias histórias são ambientadas nele.
Não é compartilhado no sentido de ter vários autores escrevendo nele.
Ana Lúcia Merege, refletindo sobre as construções das suas narrativas, os elementos que vc costuma trabalhar nas histórias, o que você percebe que aprendeu com elas?
Acho que há uma relação estreita entre o que aparece nas histórias e as coisas que eu quero compartilhar, que vêm tanto de vivências minhas quanto de reflexões, de desejos que eu tenho para o mundo... Eu gostaria que todos amassem, deixando livres os seres amados, e isso aparece na trilogia. Gostaria que todos lutassem por nossos direitos, e isso aparece em "Pão e Arte e Orlando" e o "Escudo da Coragem". Quando eu escrevo, reflito sobre esses temas e acho que me torno mais forte, mais convicta dos meus ideais e em paz com as minhas convicções e até com as limitações.
Precisei aceitar que não teria certas coisas, que não aprenderia a fazê-las e que não queria aceitar algumas coisas se fosse para abrir mão de outras, que me são mais caras.
Como você vê o cenário atual da fantasia?
Eu acho que sobrevivemos admiravelmente a muitas tempestades. Fechamento de livrarias, subida nos preços dos insumos, desvalorização do produto cultural nacional e da literatura fantástica como gênero e, agora, a pandemia. Nós nos reinventamos, além das muitas e novas vozes que surgem entre os escritores, também encontramos alternativas para continuar a existir. Eventos online, financiamentos coletivos e muitas outras coisas. Resta prosseguir com a tarefa de formiguinha que é conquistar mais leitores, e até por isso é tão importante escrever para crianças e jovens.
Sobre o conto "A terra sem males", como surgiu?
Se percorrer minha obra, você vai achar duendes em todo lado. Eu sou fascinada pelo tema, e na época em que escrevi costumava viajar muito para lugares como Visconde de Mauá e Lumiar, no estado do RJ, onde tem muitos "novos hippies", muita gente que acredita em duende. Então surgiu a ideia de ter esse casal, Victor e Fiona, que é vizinho de um território invisível com "tribos" de duendes que têm características semelhantes às de povos indígenas.
Quais ferramentas você utiliza para divulgar seu trabalho e alcançar mais pessoas?
Eu não sou uma expert em marketing digital e meus blogs andam cheios de teias de aranha, mas tenho usado as redes sociais e visto, com alegria, meus amigos ligados a fantasia conhecendo e se conectando com os amigos da literatura fantástica. Através de muitas lives, entrevistas e postagens com conteúdo estou conhecendo pessoas novas, fazendo amigos e conquistando leitores.
Como construiu sua base de leitores? Tem algum conselho sobre isso?
Eu acho que eles têm de dar à escrita seu tempo de maturação, preparar bem as histórias antes de soltar no mundo, fazer conexões... Se a gente se aliar, se ajudar, vamos chegar muito mais longe.
Pode nos indicar algumas das novas vozes da literatura?
Novas vozes são muitas. Adoro o trabalho da Aya Imaeda, da Fernanda Castro, da Isa Próspero, do Diego Guerra, do Eduardo Kasse, da Claudia Dugim, do Cirilo Lemos, do Bernardo Stamato. São autores na faixa dos 30 e alguns até dos 20 anos que eu acho deliciosos de ler.
Tem o pessoal mais velho que é sempre uma delícia de ler. Cristina Pezel, Simone Saueressig, Fábio Fernandes, Braulio Tavares...
Entrevista: Filipo Brazilliano
Edição e revisão: Elisa Fonseca
Que delícia ler histórias assim que nos faz sair do lugar! Lendo esse conto, lembrei da viagem que fiz para Ibitipoca e de todo o misticismo que envolve lugares assim. Parabéns, Ana 👏