Sônia falava quando cheguei. O grupo se virou para mim enquanto eu atravessava a sala, como se os tivesse flagrado. Eu só queria um café. Sonia não se deteve, continuou a história. Ser bonita lhe dava esse direito.
A máquina de café guinchou, e a Marta da contabilidade me fuzilou com os olhos. Os dois engravatados que a acompanhavam já haviam perdido o interesse em mim e sorriam a cada frase de Sônia. Meu café pingou dolorosamente até a borda da xícara e só então pude ouvir o que Sônia dizia. Contava um caso envolvendo o seu gato, o vizinho e dois pacotes de leite em pó.
— Eu já tive um gato — falei.
Se me perguntassem hoje, diria que fiz de propósito. Na hora, arregalei os olhos, sem saber como deixei escapar aquilo em voz alta. Talvez ninguém tivesse ouvido, mas Sônia se interrompeu.
— Uma vez — desculpei-me. — Eu já tive um gato, uma vez.
Sônia gargalhou, balançando a cabeleira preta. Ela era alta, um pouco mais do que eu, tinha corpo de bailarina. Parecia frágil. Quando estávamos na sétima série, ela quis brigar com uma jogadora de vôlei do ensino médio. A jogadora agarrou seus punhos e os torceu. Sônia mordeu-lhe o nariz até sair sangue. As duas foram suspensas. Tornaram-se amigas, depois.
Esbarrei com Sônia já no meu primeiro dia na empresa, saindo do elevador. Ela não me viu. Eu também não me veria se tivesse aquela confiança e usasse aqueles vestidos coloridos. Pelos corredores da empresa, eu andava do mesmo jeito que andava na escola, quase sempre de cabeça baixa. Gostava dos cantos. Não que eu sentisse vergonha. Mamãe nos ensinou a discrição e o silêncio e me mantive fiel aos seus princípios mesmo depois de sua morte.
Por isso, Sônia fez aquela cara esquisita depois que parou de rir.
— A gente se conhece?
Percebi que Marta começava a responder por mim e me apressei a dizer que nos conhecíamos da escola, da primeira série ao pré-vestibular, mas nunca trocamos uma palavra. Um dos engravatados se espantou.
— Vocês têm a mesma idade?
Depois desse dia, fomos nos aproximando. Sônia trabalhava em outra sala, então trocávamos mensagem para almoçarmos no mesmo horário. Ela me contou que, à sua maneira, também era órfã. Os pais migraram para o sul depois que ela se formou e agora se encontravam apenas nas festas de fim de ano. Às vezes, sentia-se muito só, confidenciou-me. Não gostava de sair de casa. As baladas, os happy hour`s, tudo obrigação social. Conhecia muita gente, nenhum amigo de verdade. Perguntei da jogadora de vôlei e nós rimos.
Comprou o gato em uma dessas crises de solidão. Saiu da casa do ex-namorado direto para a pet shop. Escolheu um gato por dica da atendente, afinal vivia em apartamento, trabalhava o dia todo, e gatos são menos trabalhosos. Não se deu com o bicho. Ele não parecia dar muita bola pra ela nem pra nada. Podia jurar que o gato era surdo ou idiota.
Eu admirava as certezas dela.
Estávamos na copa uma tarde quando a percebi inquieta. Eu já conseguia adivinhar suas emoções só pelo modo como mexia as sobrancelhas. Escondia alguma coisa, alguma coisa grande, comentei. Ela mostrou os dentes, tentando fazer graça, e disse:
— Você mora aqui perto, né? Sempre chega mais cedo do que todo mundo, fica andando pelas salas. Quer dizer, é o que dizem.
Eu não achei que deveria falar de como levantava antes do sol nascer porque não suportava mais ouvir os meus próprios pensamentos. Não quis falar de como era cansativo me demorar mais alguns minutos na minha quitinete de dois cômodos. Só confirmei com um aceno.
— Eu também moro aqui perto — ela disse. — Mas, sabe, eu vou sair da empresa.
Antes que eu denunciasse o golpe, ela explicou que havia arrumado uma bolsa para estudar na França, seis, sete meses, no máximo. Nem sequer entregaria o apartamento, fazia questão de manter o aluguel. Naquela região, era uma pechincha.
— Preciso de um super favor — disse. — Vou ficar na casa de uns amigos e não vou poder levar o Duque — era o nome do gato, Duque. — Se você pudesse cuidar dele ao menos até o fim do ano... Se puder, claro! Aí, minha mãe vem pegar no Natal. Além do mais, — emendou um sorriso, — porra, não tenho mais ninguém em quem confiar, menos ainda quem goste de gatos.
Eu não gostava de gatos. Tive um, uma vez. Passar no apartamento de Sônia umas três vezes por semana não me pareceu tarefa extenuante. Ela me reembolsaria qualquer gasto, e eu teria mais um destino pra ir além da empresa. Eu disse que seria um prazer e meus olhos coçaram quando nos abraçamos.
Ela me entregou as chaves na semana seguinte. Não teve tempo de me levar antes, mas cuidou de avisar ao porteiro. O endereço ficava na mesma rua da empresa e, como o chefe não me liberou para acompanhá-la ao aeroporto, resolvi passar naquele dia mesmo para conhecer.
Prédio de gente rica, vinte e cinco andares, dois apartamentos por andar. O de Sônia ficava no vigésimo quarto. Nunca tinha subido tão alto. Quando mamãe ainda era viva, o homem que diziam ser meu pai tentou nos levar para passar um final de semana na serra com sua nova família. Passei dias imaginando como seria ver as pessoas lá do alto, pequenas como formiguinhas. Na noite anterior, adoeci e não pudemos ir. Ouvi mamãe gritando ao telefone.
O apartamento de Sônia era amplo e arejado, com uma vista que me deu calafrios já da porta de entrada. O vento zuniu em meus ouvidos. Ela esqueceu quase todas as janelas abertas, deve ter saído apressada. Uma escova de dentes se equilibrava na beira da mesa de jantar e uma solitária bota de cano alto jazia no tapete. Jamais encontrei o par.
O gato achei dormindo sobre uma pilha de roupas na lavanderia. Ao me ver, espreguiçou-se e soltou um miado rouco. Tinha ração nos armários escancarados, bem ao lado de pilhas de macarrão instantâneo. Servi num prato. A vasilha dele achei melhor jogar no lixo.
Fechei as janelas para calar um pouco o vento. Sentei-me no sofá e acompanhei os últimos raios de sol até o apartamento ficar escuro. Ecoaram buzinas distantes, misturadas aos estalos que o gato fazia mastigando a ração. Senti um cansaço familiar e me deixei ficar por ali.
No dia seguinte, trabalhei com a mesma roupa. Ninguém reparou. Voltei pro apartamento com a disposição de fazer faxina, jantei macarrão instantâneo sabor galinha caipira e troquei mensagens com Sônia. Ela adorou Paris. Agora, já estava em outra cidade, quase na fronteira com a Alemanha, bem hospedada na casa dos amigos, um adorável casal que conhecera em uma viagem. A cidadezinha era toda medieval. Os homens, maravilhosos.
— Você tem que ver — ela escreveu.
Adormeci no tapete, sem conseguir limpar nada. Acordei com o gato se esfregando na minha cara, muito depois da hora de entrar no trabalho. Tive que escovar os dentes no banheiro da empresa.
Num domingo, juntei minhas coisas na quitinete e levei pro apartamento. Coube tudo na mochila e em uma caixa de papelão, tomada pelo gato tão logo a esvaziei. Tive vergonha de misturar minhas roupas com as que Sônia esquecera. Separei as minhas em uma gaveta, para usá-las somente no trabalho, e experimentei um de seus vestidos.
As mensagens de Sônia logo rarearam. Tentei puxar assunto, falei do gato, inventei histórias sobre o vizinho, com quem nunca cruzei. Ela ocupada, estudando muito, vendo coisas novas. Conheceu um cara, um alemão de queixo quadrado e lábios finos. Não o achei bonito. Quando tiveram uma discussãozinha besta num restaurante, ela entristeceu, teve uma de suas crises. Varamos algumas madrugadas conversando, falando mal de homens. Faltei ao trabalho aquela semana toda, mas Sônia e o alemão se entenderam e engataram um namoro. Ela me enviou as fotos.
Ninguém falou comigo quando o chefe me demitiu. Deixei a mesa como estava, o computador ligado num site de loja de brinquedos para gatos. Encontrei Marta no elevador. Ela me acenou, eu baixei a cabeça. Descemos em silêncio até o térreo e não me despedi.
Dormi bem por dias. Então, Sônia falou em alongar a estadia na Europa.
— Não precisa se preocupar — escreveu. — Meus pais anteciparam a viagem. Já, já você vai estar livre pra ir do trabalho direto pra casa.
Ela me passou a data certa, mas sempre esqueço. Costumo acordar à noite com a impressão de estarem tocando a campainha. Teriam a decência de interfonar antes de subir? Teriam cópias das chaves? Não consigo imaginar o que me diriam. Os vestidos de Sônia ficam grandes em mim.
Agora, está passando na TV um documentário sobre insetos. Eu queria ver outra coisa. Procurei o controle remoto até cansar. Não importa, troquei de vestido há pouco para me sentir melhor. Escolhi um com flores de pétalas enormes cor de laranja. O gato saiu da caixa e me olhou. Tive a impressão de que não gostou do que viu.
Conheça o autor
Moacir Fio é escritor, músico e quadrinista nas horas vagas. Com alguns contos publicados em revistas, antologias e concursos, hoje se dedica à função de editor geral no Escambau, portal dedicado a publicar e divulgar os trabalhos do coletivo cultural Escambanautas.
Moacir, quando você começou a escrever?
Bom, essa é uma questão interessante. Fui publicado pela primeira vez em 2008 através de um prêmio de contos aqui em Fortaleza. Desde então, minha escrita passou por longas ausências e febris retornos. Apenas em 2015, quando eu, Wilson Júnior, Michel Euclides e Tamires Branu (hoje afastada) fundamos um coletivo cultural, passei a me dedicar de forma mais consistente a escrita e edição. Mesmo assim, 2017 me surpreendeu com problemas pessoais, e passei mais três anos afastado, voltando somente em 2020. Por isso, o meu Instagram literário tem publicações apenas a partir do ano passado.
E o que te trouxe para a literatura?
Eu sempre amei ler, desde muito jovem, mas nunca me imaginei escritor. Escrevia peças na escola e canções para as minhas bandas sem me considerar escritor, de fato. Em 2008, eu já cursava administração e me sentia absolutamente infeliz com o curso quando soube do Prêmio Ideal Clube de Literatura, resolvi escrever o meu primeiro conto. Daí pra frente, passei a gostar cada vez mais de escrever, estudando técnicas literárias, mercado do livro etc.
Sobre essas leituras de jovem, quais foram?
Vai parecer super babaca, mas as primeiras leituras de que me recordo são clássicos. Dois em especial me marcaram, lidos aos sete anos: "Dom Casmurro", do Machado, e "A Metamorfose", do Kafka. A razão para isso é a seguinte: um tio meu é leitor compulsivo e havia deixado uma verdadeira biblioteca na minha avó quando se mudou. Minha mãe tratou de transportar os livros pra casa, mais para a nossa educação, mesmo (meus pais não têm o hábito da leitura). Como eu tinha asma, não podia brincar na rua e a TV só passava chatice à tarde, passei a ler os livros na estante.
Considera que a música tem influência na sua escrita? Se tem, de que forma acontece essa relação?
Sem dúvida. Minhas duas bandas favoritas: Legião Urbana e The Smiths, citam diversas obras e autores em suas canções, o que sempre me despertou curiosidade. Além disso, eu sempre gostei de criar melodias e letras, mas, sendo um péssimo cantor, nunca me empolguei tanto para interpretá-las. Diversas ideias de contos surgem de canções frustradas. Minha relação com a poesia também é estreitamente ligada ao meu gosto pela música.
Vimos que você também tem o podcast @aguapedrasapo. Pode nos falar um pouquinho sobre ele?
Esse é um projeto que eu amo demais, apesar de ter pouco tempo para ele. Basicamente, é um podcast de poesia que não fala de poesia: escolho um tema específico (o último foi sobre dinheiro) e dou um tratamento poético a ele, com inserções de falas de terceiros e, às vezes, entrevistas. Não é exatamente algo moldado para o sucesso, mas amo produzí-lo
Quais os gêneros textuais que você prefere escrever?
Olha, eu escrevo como eu leio, isto é, não tenho preferências. Escrevo poesia com o mesmo prazer com que me dedico à prosa. Meu Instagram tem mais poesia porque acredito que se enquadre mais no formato da rede social. Curiosamente, porém, o que eu mais gosto na literatura nem é escrever. Eu gosto mesmo é de editar.
Moacir, quais os seus planos e projetos relacionados à literatura para o futuro?
Todos giram ao redor do Escambau. Já estamos com nossa newsletter literária, a PULPA, a todo vapor. Em fevereiro, saiu o primeiro número da Escambanáutica, nossa revista de ficção especulativa pós-colonial. Talvez, eu publique meu primeiro livro de poesia esse ano, se tiver tempo, quem sabe?
Para finalizar, de onde veio a inspiração para o conto "As coisas devem ser bem grandes"?
É até engraçado. A inspiração vem de uma canção do Vinícius de Moraes, "A Formiga" (as coisas devem ser bem grandes/ pra formiga pequenina/ a rosa, um lindo palácio/ e o espinho, uma espada fina).
Ouvi essa canção dia desses na voz da Clara Nunes e isso ficou ecoando na minha cabeça até tomar a forma de uma personagem que se vê de forma tão ínfima a ponto de querer desaparecer na vida de alguém.
Muito bom! Me prendeu do começo ao fim.
Muito bom. Leitura fluida, gostosa. Adorei.
Que conto bom de ler, Moacir. Parabéns!
Que modelo fotogênico!