O pesadelo do diabo
por Vitor Paixão
Malphas está sentado em seu trono, resmungando outra vez. Se não fosse um dos príncipes do inferno, aposto que estaria desejando a morte. Essa é uma das duas coisas que Malphas não pode fazer, resolver o problema em seu principado é a outra.
Seu reino já não é mais o mesmo, a gestão agora é trabalhosa. Ele não é um demônio velho, demônios não ficam velhos. O príncipe ainda conserva o mesmo frescor de quando seguiu seu líder revolucionário e assumiu o principado. Mesmo assim, ele fala e amaldiçoa como se fosse um humano atrasado. Seu tormento também parece ser semelhante ao deles.
O que poderia deixar um dos príncipes do inferno tão entristecido? Ora, os homens da ciência. Desde 1500 da Era Comum, todos os homens e mulheres da ciência são condenados ao inferno. Isso não era um problema quando tudo que as possibilidades permitiam era questionar a forma do planeta terra ou o que girava em torno de quê. Era fácil torturar cientistas renascentistas, o inferno permanecia inalterado. Os pesquisadores tinham muito tempo livre entre uma sessão de tortura e outra, mas não havia muito o que fazer.
A mudança veio com o século XIX. Algum idiota lá em cima achou que seria uma boa ideia deixar a física e a química humanas avançarem. Com toda certeza, foi mais uma pegadinha de Deus. Ninguém aqui embaixo gosta do cara. Todo cientista que chegava ao principado de Malphas trazia um conhecimento novo sobre como deixar o inferno um lugar menos infernal. Só Lúcifer sabe como foi a gritaria quando aquele bendito químico apareceu com um jeito de neutralizar o cheiro de enxofre. Malphas passou vários ciclos sem retornar à forma humanóide, tornou-se um corvo cheio de desgosto.
O ar-condicionado talvez tenha sido a invenção que mais deixou o príncipe irritado. “O inferno é um lugar quente, inferno! Quem quiser friozinho que não peque”, gritava. Sua voz estava ainda mais rouca que de costume. A opinião, entretanto, não foi compartilhada pelos outros demônios, aqueles responsáveis por fazer o trabalho de verdade enquanto Malphas dava ordens. O príncipe comandava 40 legiões de demônios que preferiam trabalhar no clima frio. Ninguém gosta mesmo de calor quando precisa trabalhar.
Se a tecnologia tivesse apenas remodelado o inferno, ninguém se importaria. A eternidade poderia usar algum bem-estar, principalmente a do inferno. Torturar é uma atividade cansativa, os demônios começam no início do ciclo e só vão parar meio ciclo depois, não têm nem horário de almoço. Quem pode culpar os pobres diabos por quererem um pouco de conforto? Eu é que não os culparia. O problema é que os diabos ficaram preguiçosos. Ninguém queria mais torturar, nem servir. Uma ou outra tentativa de levante eclodiu após a chegada de alguns cientistas sociais.
Hoje em dia, ninguém trabalha neste principado. O inferno não é mais local de tortura e os demônios não tentam mais ir à Terra para possuir algum religioso e sambar em algum culto. Era uma forma de distração tradicional, o príncipe até permitia — ou fazia vista grossa. Agora, isso? Isso o príncipe não pode permitir! De que adianta dispor de tantas legiões de demônios e não batalhar contra ninguém? De que adianta poder construir fortalezas e castelos se não for para atacar o inimigo? Bom mesmo era no tempo de Salomão, ao menos os pobres diabos viam alguma diversão.
A gota d’água foram as redes sociais. Já era um caos anunciado quando o tal do Jobs desceu pra cá, caindo em outro principado mais simpático a tecnologia. Desceu por ser ateu ou algo assim, o trabalho escravo nas minas da África foi ignorado. O povo lá de cima tem uns critérios estranhos. O Jobs mesmo não construiu nada. Quando os engenheiros da Apple desceram, aí sim estava feita a desgraça. Caíram todos no nosso principado e logo começaram as obras, era mina de lítio, mina de ouro, fábrica de componente digital. Fizeram o bendito smartphone. Deram um para cada príncipe no inferno, uma semana depois ninguém mais torturava.
Lúcifer se viciou na versão infernal do Instagram. Nem amaldiçoar a Deus o rei quer mais, só quer saber de postar stories. Malphas foi o único a não aceitar bem a tecnologia. O príncipe sente falta das batalhas, de ter um propósito, sabe? Um comandante precisa comandar. Talvez demônios envelheçam, ao contrário do que pensávamos, pois o príncipe se sente velho e obsoleto. É quase um daqueles humanos que gritam com as crianças na rua e são incapazes de lidar com as novas tecnologias. Mais de seis mil anos desde a queda do céu e a vida sempre foi a mesma: guerrear, enganar, comandar, torturar. Dá para se acostumar com isso e desejar viver assim para sempre.
O estado atual do principado é um verdadeiro paraíso, mas não para Malphas. Há pouco tempo, desceu aqui uma galera da indústria 4.0 falando em automatização dos processos de trabalho e em realidade aumentada. Disseram que o príncipe deveria aceitar que os tempos mudaram e ir torturar alguém num videogame como todo humano faz numa tarde pacífica de domingo.
O paraíso é o inferno
por M. Cantuária
Leônidas encerrou a pregação agradecendo pelo sacrifício de Jesus. Pastor Léo, como era conhecido, relembrou a seus fiéis das maravilhas que encontrariam no céu se mantivessem a fé no criador. Não falava em virtudes, seus sermões alternavam entre pagar o dízimo, frequentar os cultos, ler e espalhar a palavra. Deixou o templo com a Bíblia debaixo do braço, o couro velho e desgastado da capa destoava do italiano reluzente em seus pés. O percurso até o luxuoso condomínio onde morava foi mais rápido que de costume. Por educação, o porteiro culpou a pressa pelo boa noite ignorado quando ele e Helena cumprimentaram o pastor. Leônidas não via com bons olhos os cabelos coloridos e o jeito de se vestir da vizinha “metida a cientista”. Estava certo de que ela iria para o inferno.
Helena se despediu de Joca, como carinhosamente chamava Seu Joaquim, o porteiro. Suas noites de domingo eram reservadas ao trabalho voluntário, dava aulas de alfabetização para adultos em uma comunidade carente. Não acreditava em recompensas divinas, mas dizia ser seu jeito de retribuir à sociedade pela própria educação. A doutora em bioquímica era professora e pesquisadora em uma universidade federal. Os alunos do projeto social, no entanto, não conheciam nenhuma Dra. Helena Martins, mas tinham muito carinho pela professora Leninha.
***
Leônidas e Helena voltariam a se encontrar três semanas depois. Pegaram o mesmo elevador, e uma falha técnica os prendeu juntos entre um andar e outro. Leninha respirou fundo tentando ignorar o vizinho que orava em voz alta. O elevador começou a se mover, Pastor Léo gritou um aleluia achando que suas preces haviam sido atendidas. A vizinha repetiu a palavra em voz baixa, aliviada porque iria se livrar daquela situação. Os dois estavam enganados e logo perceberam que estavam descendo rápido demais. Não houve tempo para quaisquer outros pensamentos.
***
Helena nunca tinha visto portões tão bonitos, imaginou estar no céu. Aproximou-se e eles abriram, entrou. O vento frio a fez abraçar a si mesma enquanto admirava o belo jardim ao redor. Às suas costas, uma voz familiar elogiou o trabalho da equipe de paisagismo. Não resistiu às lágrimas quando se deparou com a tia-avó lhe estendendo um casaco. O abraço precedeu a mensagem padrão de boas-vindas que Catarina havia decorado junto à sentença da sobrinha: passar a eternidade no inferno graças ao envolvimento com a ciência.
Tia Cat contou ter se voluntariado como recepcionista por direct message quando viu seu nome nos stories do InstaHell de Lúcifer. Explicou também sobre as melhorias na infraestrutura desde que os cientistas chegaram ao lugar: climatização, internet banda larga, bibliotecas comunitárias, hospitais, salas de jogos, tinha um pouco de tudo. A tia, condenada pelo manuseio de ervas medicinais e recreativas, contou não haver mais torturas, os demônios — para infelicidade de Malphas — decidiram se aposentar.
***
Gabriel olhou com desgosto para o chão feito de nuvens, estava acinzentado desde a transferência dos especialistas em química. Maldisse a Diretriz de Banimento da Ciência pela milésima vez quando terminou de preencher e entregar um formulário ao pobre coitado na sua frente. Sem engenheiros de software, o anjo precisou retomar o arquivamento em papel e o tempo de credenciamento virou um pesadelo. Leu o crachá do próximo da fila quilométrica: Leônidas Ferreira da Silva.
Gabriel passou os próximos quarenta minutos lamentando a ausência dos biblioteconomistas enquanto procurava a ficha do recém-chegado em meio ao caos. Se não fosse pecado, mataria ele mesmo o idiota que decidiu condená-los por facilitar o acesso a livros ateístas. Odiava o Comitê de Combate ao Questionamento da Fé fundado em 1467 drC. Teve ainda mais raiva quando encontrou o arquivo correto, o tal pastor Léo só estava ali devido à Lei de Inclusão Automática de Líderes Religiosos Cristãos.
Depois de vários dias de trâmites burocráticos, Leônidas conseguiu atravessar os portões do Paraíso. Esperava ser acomodado em uma mansão com uma bela vista, mas foi designado para um alojamento improvisado com barracas de madeira e lona. Responderam-lhe que não havia mais engenheiros civis e arquitetos por ali. O local era quente e abafado. “O ar quente sobe, e não temos mais físicos também”, disseram-lhe.
Pediu um copo de água com açúcar, precisava se acalmar. Não tinha açúcar, as plantações de cana morreram sem os engenheiros agrônomos. O líquido dentro do copo era levemente marrom e tinha um cheiro esquisito, achou melhor não beber. Imaginou estar em um pesadelo. Começou a se beliscar na tentativa de acordar. Um querubim alertou para tomar cuidado, não era aconselhável se machucar em um local sem médicos e enfermeiros.
Conheça Vitor Paixão
Vitor Paixão é estudante de filosofia com interesse em science studies e pesquisa em filosofia da biologia. Em literatura, trabalha com contos curtos de realismo mágico e literatura filosófica. É contista ocasional na newsletter Capivarais.
Vitor, o que te trouxe para o mundo literário?
Eu fui convidado, quase que forçado, a escrever, em grande parte por influência da Mile Cantuária e de autores do coletivo Escambau, como o Thyago S. Costa, o Hermes Veras e o Raphael Carmesin. Esses quatro ainda são meus escritores mais próximos e são grandes influências na minha escrita, de um jeito ou de outro.
E quais gêneros prefere trabalhar?
Falando em termos de gênero, eu quebrei muito a cara, quando comecei a escrever, imaginei que estaria no realismo pé no chão, mas acabei me encontrando numa mistura estranha de ficção científica fraca e baixa fantasia, tudo com uma influência bem forte do realismo mágico.
Sou contista, mais que qualquer coisa. Gostaria muito de experimentar outros meios de fazer narrativa, mas acabo sempre sendo fisgado pelo conto. Tem uma certa segurança em saber que o fim de uma história tá no cômodo seguinte.
Você costuma trabalhar em um mesmo universo ou traz uma variedade nesse sentido?
Acho que não trabalho universos, em qualquer sentido do termo. Todos os meus contos acontecem em espaços atômicos, que poderiam muito bem acontecer em qualquer lugar ou em lugar nenhum. Acho que a continuidade entre eles é possível, mas não necessária.
Onde ocorre sua inspiração, onde, normalmente o seu olhar de escritor pousa e reproduz em palavras?
Ultimamente, minha maior fonte de inspiração tem sido o trânsito do corpo no mundo. Não era assim nos primeiros meses que escrevia, mas a medida em que me permiti decidir com mais liberdade meus temas, as formas do corpo ocupar espaços passou a ser o tema que atravessa o que eu escrevo. Meus contos mais recentes costumam abordar o modo como o transitar, e a forma desse transitar, de ocupar espaços, se coloca nos corpos e nas vidas das pessoas que esse corpos corporificam. Eu culpo o Merleau-Ponty, uma das minhas influências de fora da escrita.
Pode dar um exemplo prático dessa temática?
O segundo conto da minha newsletter, que tá em pausa momentânea por causa das minhas obrigações acadêmicas, o "Todo mundo é península", foi um conto sobre memória e sobre a capacidade de se afetar pelo outro e pelos espaços onde essa convivência aconteceu. Ou ainda, o quinto conto da newsletter, "O quarto de Maria ainda é cinza", que tratava dos efeitos do isolamento e de uma carência de experiências do mundo.
Quais seus planos para o ano que vem?
Meus planos pro ano que vem são mais de continuação e reconstrução que de construção. Eu espero aumentar minha participação em espaços literários, revistas de ficção especulativa, e voltar ativamente com minha newsletter. Eu tenho uma noveleta planejada que está um pouco difícil de colocar no papel, mas que eu espero poder trabalhar entre esse fim de ano e o começo do ano que vem
Quem são suas principais referências literárias?
Eu gostaria de dizer que eu tenho referências literárias bastante amplas, mas eu estaria mentindo. Muitos dos autores que gosto de ler, quanto a literatura, não são minhas influências diretas, como a Banana Yoshimoto, o Murakami, Kafka, Gabo, Saramago e outros. Acho que te mais de autores contemporâneos no que escrevo, como o próprio Thyago S. Costa e o Raphael Carmesin do que algum autor clássico, também algumas influências filosóficas como o Walter Benjamin e Merleau-Ponty. Recomendo muito os quatro autores que citei no começo, os outros não precisam ser recomendados. Já são grandes por eles mesmos.
Conheça M. Cantuária
M. Cantuária é alagoana, graduada em engenharia civil, mas com a audácia de se dizer escritora e poeta. Vegana por desejo de justiça, feminista por sobrevivência. Atua como revisora na Newsletter Capivarais.
Quando você começou a se interessar por literatura, M. Cantuária?
Eu me lembro de gostar muito de ler desde a infância, mas não me lembro de quais livros eu li primeiro. Acho que, nesse sentido, a memória mais marcante que eu tenho é ter lido uma coleção de José de Alencar na adolescência, lá pelos meus treze ou quatorze anos. Senhora foi um divisor de águas para mim, uma transição entre ler coisas “de criança” e ler coisas “de adulto”. Depois daí não parei mais.
E a escrita, aconteceu na mesma época?
Veio um pouco depois. Eu escrevi meu primeiro poema — horrível, diga-se de passagem — ainda na infância por conta de uma atividade na escola. Depois veio aquela fase das paixonites de adolescente... E vários textos cafonas de amor. A fase passou, mas a necessidade pela escrita permaneceu. Em algum ponto do trajeto, eu percebi que sem a escrita eu me sentia sufocando. Escrever se tornou um ato de liberdade e de autoconhecimento.
Passei anos escrevendo apenas poesia e prosa poética. Conheci o coletivo Escambau há uns quatro anos e resolvi me aventurar nos microcontos para participar de um concurso. Tomei gosto pela escrita mais narrativa e aqui estou.
Eu já reparei que a sua inspiração vem muito da poesia, me conta um pouco dessa sua relação com a poesia. Ela interfere na sua prosa?
A minha relação com a poesia é conturbada, a gente se ama e se odeia em igual medida. A minha prosa é mais leve. Tanto para mim, que escrevo, quanto para quem lê. Eu diria que escrevo prosa nos dias em que estou de bem com o mundo. A poesia surge nos dias em que estou de mal comigo. Então acho que talvez seja normal que elas se misturem um pouco às vezes.
Como funciona seu processo criativo?
Por causa da minha formação, eu estou acostumada a fazer planejamentos complexos, mas a escrita é meu ambiente de fuga, é quando eu esqueço de tudo isso e só me entrego. Sempre que eu tento fazer um planejamento detalhado de um texto, eu perco a vontade de escrevê-lo.
Qual foi a inspiração de seu conto?
Eu escrevi aquele texto para um desafio do coletivo Escambau. A ideia era complementar um conto do Paixão com a mesma temática. O conto dele se passava no inferno, isso me deu a ideia de escrever um que mostrasse o que estaria acontecendo no céu.
Mile, pode nos dar uma palhinha quanto aos seus projetos futuros?
Para o futuro, eu estou escrevendo algumas coisas, mas gostaria muito de continuar fazendo trabalhos de leitura crítica, edição e revisão.
Vou aproveitar para fazer a propaganda. Para quem quiser conhecer e acompanhar meu trabalho, eu atuo como editora e revisora na Capivarais e também posto meus poemas e artes digitais no meu perfil do Instagram.
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