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Filosofando sobre diálogos no horror

“Os sonhos de criança são especiais. Eles são como um oceano, e os sonhos grandes às vezes transbordam.”

O extrato do diálogo que abre nosso artigo poderia ter sido retirado de qualquer texto de fantasia infantojuvenil, ou de um grande pensador à frente de seu tempo, uma vez que traz aos holofotes crianças e seus sonhos grandiosos.



Porém, o trecho do diálogo foi removido do primeiro episódio de A Maldição da Mansão Hill (2018), sucesso astronômico entre os amantes do horror e das séries do diretor Mike Flanagan.


Após o momento aterrorizante, a frase nos é apresentada com a sutileza de um aprendizado, fazendo com que façamos uma reflexão acerca de temores de infância, bem como de seus reflexos em nós, meros participantes do mundo. Esse não é o único momento de aprendizado da série, nem o único meio em que Flanagan se utiliza do dom literário, se considerarmos todas as suas outras obras.


No entanto, foi justamente seus diálogos imponentes que terminaram fazendo germinar em mim a vontade de falar sobre diálogos e sua importância na construção de uma narrativa, seja ela de horror, ou não.


É certo que você, caro leitor, já teve suas leituras assombradas por alguns dos diálogos que nunca mais esqueceu, ainda que no cinema as coisas tenham sido mais corriqueiras. E se você escreve, aí então que o rio faz a curva, pois já se viu uma ou mais vezes em busca da frase de efeito perfeita.


Para isso, como escritor, busco seguir alguns passos a fim de conseguir expressar todo meu sentimento nesses momentos, sem os tornar repetitivos ou exagerados. Segue o fio:


  • Cuidado com os verbos dicendi ou sentiendi e adjetivos. Muitas vezes nos preocupamos em variar os verbos após os diálogos, no entanto, nos esquecemos da tendência em complementá-los com adjetivos.


Dizemos que personagens sussurraram ou gritaram alguma coisa, quando, na verdade, poderíamos recorrer ao próprio texto como apoio ao diálogo, deixando claro que a situação exige um sussurro ou um grito. No exemplo abaixo, podemos ver claramente que não foi necessário dizer que o tom da conversa começou amargurado ou duro, já que o autor utiliza da narração para fazê-lo.


“Você é da imprensa?”, indagou a outra mulher. Os anos tinham amargurado suas feições além da possibilidade de amenizá-las.”

(Trecho de Candyman, de Clive Barker)


  • E por falar em texto, é necessário tomar bastante cuidado para que a história não se resuma a diálogos sem sentido, em que a ambientação é esquecida. Algumas das histórias mais horripilantes, como o clássico A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe, tem pouquíssimos diálogos. Saiba a hora de usar ou não o recurso.


Alguns diálogos não são necessários se não fazem parte do tema central da obra.


Por exemplo, amigos que não se veem há muito tempo podem falar sobre a vida, se este for o motivo do reencontro, mas o mesmo não se aplica às situações em que ambos reviveram o momento.


  • Leia seus diálogos em voz alta. Parece bobo quando pensamos em algo tão simples, não é mesmo? Porém, se buscamos um diálogo fidedigno, escutar o que nossos personagens estão dizendo pode não só ajudar a trazer realismo às conversas, mas também nos ajudará encontrar a ‘voz’ com que cada personagem se expressa. Ele é grosseiro? Expressa-se de forma submissa? Utiliza gírias?


No exemplo abaixo, vemos de maneira implícita a diferença moral entre Louis e Lestat, vampiros das famosas Crônicas Vampirescas, de Anne Rice:


“— Agora ela gemia, imersa em seu sono, e isto foi mais do que eu podia suportar (…)
— Só uma dentadinha. Não passa de um pescocinho.

É possível compreender a compaixão de Louis e o desprezo de Lestat pela vida.

(Trecho de Entrevista com o Vampiro, 1976)


  • Escute as pessoas ao seu redor. Um bom escritor é também um bom ouvinte, e as pessoas ao seu redor são tão importantes para a escrita de um diálogo, quanto apenas as suas palavras. Como as pessoas falam ou se portam? Quais expressões costumam usar?


Este é um bom exercício até mesmo para situações narradas no discurso indireto (quando não há diálogos), além disso, ajudará se você estiver escrevendo uma história que se passa em uma região ou local em que está inserido. No trecho a seguir, é possível perceber o quão fluida é a conversa entre dois amigos:

“— Sério, Lucas. Essa roupa lembra aquelas fardas romanas. Santo Expedito era soldado de Roma.
— Sério?
— Acho que era.
— Agora pareço santo. Essa é boa.”

(Trecho de O Vampiro Rei, de André Vianco)


  • Cuidado com diálogos longos. Aqui não são necessárias muitas explicações… Já me vi pulando longos diálogos. O leitor sabe quando os diálogos estão em um momento em que não são necessários, ou tende a se cansar durante um discurso longo de um único personagem.


“Quando me decompuser, e as minúsculas partes de mim forem recicladas, estarei em bilhões de outros lugares. Meus átomos estarão em plantas, insetos e animais, serei como as estrelas no céu. Um momento estão lá e, no seguinte, espalhadas pelo cosmos.”

(Trecho do longo discurso utilizado no quarto episódio de Midnight Mass - 2021, outra série de Mike Flanagan)


O trecho escolhido foi retirado de um contexto onde o personagem repensa sobre a morte e suas crenças, completamente compatível com os recursos visuais possíveis em uma série, mas que pode se tornar desgastante se colocado em um contexto literário.


  • Defina o tipo de narrador do seu texto. Ele é um narrador confiável? Diz tudo o que precisa ser dito sobre o que está acontecendo, ou recorre ao discurso indireto para esconder alguns segredos?


No trecho a seguir, retirado de Drácula (1897), o narrador Jonathan Harker não precisou expressar em diálogos sua desconfiança.


“— Por que não posso partir hoje à noite?
— Porque, meu caro senhor, o cocheiro e os cavalos estão longe daqui, cumprindo outra tarefa.
— Mas eu poderia ir andando, e com prazer. Quero partir agora.
Ele sorriu. E foi um sorriso tão melífluo — suave e, ao mesmo tempo, diabólico — que tive certeza de que algum truque se escondia por trás dele.”

Em suma, se você chegou até aqui, saiba que o que foi dito se deve ao estilo único de cada autor. E cada autor necessita encontrar o que funciona ou não para cada tipo de texto que escreve.


Conheça o autor


Rafael Delboni é escritor de fantasia e horror, embora arrisque, às vezes, na poesia. Mora no ABC Paulista com seu companheiro e o cachorro deles, Mr. Bean. Professor de inglês e literatura, tem como inspirações Stephen King, Anne Rice e Edgar Allan Poe, sendo este último o seu maior ídolo. É dono do Vísceras Literárias, uma página em que conta diariamente sobre seus textos, suas inspirações, além de falar de RPG, filmes e cultura pop/horror em geral.


Artigo por Rafael Delboni
Preparação por Elisa Fonseca

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