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O Kishotenketsu e Como Construir Narrativas sem Conflito

Atualizado: 4 de jan. de 2021

Por Adson Leonardo





Introdução


A narrativa em três atos já é uma velha conhecida para nós, do ocidente. Seja nos livros, filmes, séries ou qualquer outra mídia. Esse padrão de se contar histórias permeia toda nossa ficção.


Sua estrutura é simples, primeiro introduzimos o mundo e personagens no primeiro ato, estabelecendo um conflito ao fim dele. Depois as coisas se complicam e os protagonistas enfrentam o conflito, levando à um clímax. No último tudo se resolve, gerando crescimento dos personagens.


Sem dúvidas funciona. É um terreno comum que já caminhamos muitas vezes, ele se adequa ao padrão de pensamento e percepção que foi construído ao longo de toda nossa vida, como indivíduos e sociedade.


Porém, como em qualquer forma de arte, existem outros modelos para se estruturar uma obra. O kishotenketsu é a narrativa clássica do oriente e nos apresenta uma estrutura em quatro atos, ao invés de três, mas que se difere da tradição do ocidente em muitos outros aspectos.


Desenvolvimento


Originado na poesia chinesa, o kishotenketsu logo se espalhou e deu forma à narrativa japonesa, coreana e de outras regiões. Seus significados - Ki: início ou introdução, Sho: desenvolvimento, Ten: virada ou complicação e Ketsu: conclusão - nos dá a forma básica de como orientais contam suas histórias.

Uma tirinha em quatro quadros. Lutadores de pé sob as cordas de um ringue se encaam no primeiro quadro. No segundo, eles saltam um  de contr ao outro. No terceiro quadro os homens se beijam loucamente. No quarto um deles dá um golpe o deitando sob o ringue e quebrando toda a expectativa de luta.
Yonkoma é um mangá no formato de tirinhas composto por quatro quadros ou vinhetas de tamanhos iguais ordenados de cima para baixo. No mundo todo yonkoma vem do japonês, mas o estilo existe fora do Japão em outros países da Ásia e no continente americano também.

Talvez a expressão mais simples desse formato sejam as tiras japonesas em quatro quadros. Famosos no seu país, esses quadrinhos destilam para a gente o mais básico da estrutura do kishotenketsu.


O primeiro quadro (ou ato) nos mostra um cenário, o segundo o desenvolve, detalhando o mundo e/ou personagens e perspectivas. No terceiro está o clímax, executado através de uma revelação ou novo ponto de vista sendo apresentado às vezes sem relação direta com os dois primeiros. No quarto é onde tudo se conecta, resinificando os dois primeiros quadros através do mostrado do terceiro e amarrando pontas soltas.


Claro que esse formato se espalha para os mangás, animações, filmes e até videojogos. Em quase toda mídia oriental é possível encontrar o kishotenketsu.


Observe que durante a descrição das duas estruturas narrativas, algumas diferenças são visíveis. Conflito, enfrentamento e crescimento são considerados pontos chave para uma história quando utilizamos o modelo ocidental. Em momento algum estão presentes ou são necessários na oriental.


Complicação


A grande diferença entre os dois modelos é que um assume o conflito como parte essencial de uma narrativa, e que o mundo e personagens será alterado pelo enfrentamento deste. O outro, por sua vez, não tem necessidade de conflito, logo também não tem de um enfrentamento e não se assume que os personagens sairão melhorados ou mais fortes de alguma forma.


O kishotenketsu escala sua história e produz o clímax utilizando de exposição e contraste. Ao apresentar uma nova perspectiva no terceiro ato. A narrativa gera interesse através da curiosidade ou quebra de expectativa e a conclusão se dá pela simples justaposição de informações.


Ao dizer que os dois primeiros atos serão ressignificados quero dizer que, quando colocados de encontro com o próximo, as informações neles introduzidas e desenvolvidas tomarão uma nova forma frente às revelações dadas no terceiro. Por isso uma “complicação”. O que tomamos por certo no início será revirado, gerando humor, suspense e ação.


Tal ausência de conflito, não por omissão mas por desnecessidade, muitas vezes leva a narrativa a parecer entediante ou “sem sal”. Então deixe-me colocar mais água na sopa e falar sobre outro ponto não essencial no kishotenketsu: crescimento.


Qualquer um que já assistiu a animações japonesas, ou suspense e terror oriental, poderá compreender. Geralmente lentas, as narrativas passam a maior parte do tempo desenvolvendo os personagens, suas rotinas e o mundo, para depois revirar tudo de cabeça para baixo de alguma forma. E então, muitas vezes após esses eventos, os resultados são apenas uma readaptação de rotina. Os personagens continuam com suas vidas. Mudadas, é claro, e o mundo talvez não seja mais os mesmo, mas amanhã é apenas outro dia e eles continuam a viver. Há mudança. Não o crescimento como visualizado na narrativa heroica ocidental clássica, mas sim o enfrentamento de uma nova realidade.


Conclusão


Talvez o exposto até aqui tenha lhe deixado com a pulga atrás da orelha, seja por estranhamento ou reconhecimento. E essa é a função do kishotenketsu. Sua narrativa centrada em exposição gera no consumidor a sensação de descoberta. Ao montar o todo em sua mente, utilizando das peças dadas e preenchendo as lacunas com sua própria imaginação, ele se sente parte da história, como um personagem naquele mundo que o descobriu e redescobriu.


Tudo isso fica visível quando tratamos de terror e por isso o horror oriental é tão marcante e forte para nós. A ausência de ação direta e enfrentamento deixa os personagens extremamente vulneráveis às revelações e suspense criado pelo terceiro ato aparentemente desconexo e estranho. E, quando chocados os três primeiros, toda a obra se desenrola na nossa frente, em uma virada surpreendente e talvez desconfortante. Essa estrutura é incrivelmente poderosa para se criar suspense e tensão, e tem sido utilizada pelo cinema oriental com sucesso por várias décadas.


Nos videojogos e mangás japoneses também é bastante óbvia a estrutura. A Nintendo passou a utilizar o kishotenketsu ao desenhar os níveis para seus jogos do Super Mario. Através do game design eles: introduzem uma mecânica, geralmente num ambiente seguro onde o jogador não vai perder, permitindo a exploração e aprendizado; a desenvolvem, mostrando novas formas da mecânica ser utilizada; a complicam, expondo o jogador a situações cada vez mais desafiadoras e perigosas e ao final colocam um último teste para tudo o que foi aprendido até então.


Já nos mangás basta observar os formatos das histórias mais famosas. A exposição e novas revelações geralmente são os pontos chave das narrativas, dando nova perspectiva à jornada do protagonista, ao mundo e pessoas ao seu redor. As obras shounen, geralmente focadas na ação e aventura, são cheias de conflito, e em momento algum o kishotenketsu os descarta, porém utilizam constantemente em seus arcos de história da complicação do terceiro ato, revelando ao protagonista que tudo é maior ou diferente de como pensava.


Tente observar da próxima vez que consumir uma obra em qual estrutura ela se encaixa. Como a tensão e clímax são criados, quais problemas existem e como os personagens lidam com ele, se é que lidam.


Como toda técnica ou estrutura, o kishotenketsu é apenas uma de muitas. Qual usar sempre depende de uma séries de fatores e o tipo de história que se quer contar. As ferramentas existem e servem a propósitos diversos, e tê-las em cinto de utilidades, prontas para uso, te ajudará a evoluir como artista e alcançar as pessoas das mais variadas formas.


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