Texto por: Maria Moreschi
O cinema de Federico Fellini é de tal modo único, que a variante Felliniana se tornou um termo de referência.
Em 2020 comemoramos os 100 anos do cinema do diretor Italiano Federico Fellini. Nascido na cidade de Rimini, no litoral adriático, teve um começo de vida modesta, foi desenhista (caricaturista), retratista e radialista em Roma. Aos trinta anos, na década de 50, Federico Fellini (1943 a 1993) assinou seu primeiro filme solo "Il Sceicco Bianco" 1952. Mas foi por seus trabalhos com o diretor Roberto Rossellini, produzidos no contexto de reconstrução da Itália no pós guerra que ele veio a se destacar. É nesse contexto histórico, conhecido como neo-realismo, mais precisamente italiano, que "Le Notti di Cabiria" é produzido, em 1957.
Para celebrar o cinema de Fellini, trazemos uma de suas personagens femininas mais fortes do cinema Italiano de sua época, Cabíria, que inspirou diversos outros realizadores a arriscarem a transporem biografia ficcionais, com toques de sonhos, para as experiências narrativas do cinema moderno.
A história segue Cabíria, uma prostituta sonhadora e de grande personalidade da cidade de Roma, que conhece uma estrela de cinema, ascendendo-a uma esperança de mudança de vida e a possibilidade de uma relação séria com um parceiro. Mais a frente seu sonho se materializa em um homem subitamente apaixonado por ela, mas que a engana.
Esse filme é verdadeiramente impactante em sua simplicidade. Consegue tirar do espectador tanto risos quanto choros. É uma marca que nos faz lembrar que a arte imita a vida e a vida imita a arte. Ele nos transporta diretamente para o seu contexto devido a forte presença da personagem principal, encenada por Giulietta Masina (1943 a 1993), que é demasiadamente verdadeira e de bom coração, porém, sofre inúmeras vezes por sonhar demais em um contexto desfavorável. Apenas um dos motivos que nos fazem aceitar a montanha russa de emoções que uma hora e dez de filme nos concede com essa personagem.
Com passagens que contrapõem o realismo, que é uma marca de Fellini, e emergem no onírico, o filme nos apresenta cenas como o momento em que uma procissão católica atravessa a Passagiata Archeologica (lugar de encontro das prostitutas) trazendo Cabíria para uma espécie de chamado à esperança divina. Uma passagem magnífica que mistura paganismo e religiosidade.
É nesse sentido que celebramos nesse post a sensibilidade que a direção de Federico Fellini conseguiu exprimir através das suas personagens exageradas (artificio inspirado em suas caricaturas da época de desenhista), que marcou para sempre a construção de outras personagens mulheres "tabus" para as telas do cinema. Sob a sua perspectiva neorrealista própria, o diretor explora as autobiografias inventadas, entre o vivido e o sonhado. Com efeito, essa materializa-se através da verossimilhança com que simpatizamos com Cabíria nesse filme. Uma mulher simples, mas de grande personalidade, que não leva desaforo para casa e que doa tudo de si pela esperança e pelo sonho de mudar de vida. Algo que acontece através de uma relação repentina e milagrosa com um homem chamado D'Onofrio, que a seduz com promessas.
Fellini utiliza-se da ferramenta narrativa da primeira pessoa (ou seja, nós espectadores sabemos o que Cabíria sabe e nada mais), para que as sensações alimentadas pela personagem, também sejam sentidas por nós de forma mais intima. Quando ela é seduzida por D'Onofrio através de seu ponto fraco, que é tira-la da vida de prostituta, não porque ele está apaixonada por ela, mas porque sabe que ela guarda uma grande quantia em dinheiro, nós espectadores sentimo-nos também traídos. A psicologia associada a essa experiência catártica de grande felicidade e tamanha frustração é trabalhada nesse filme de modo lento e associativo através de experiências humanas comuns, que Fellini trabalha pela biografia ficcional. E é por isso e por tudo o que a mulher passa ao longo do filme, que sentimos intensamente a sua suplica de morte quando essa chega, após D'Onofre tentar matá-la por seu dinheiro.
A construção visual do filme tanto pelo aspectos do guarda roupa de Cabíria, distinguindo-a das outras personagens mulheres, dando-a ainda mais personalidade, assim como os aspectos de som e de luz, foram utilizados para transportar o espectador para as duas fases do filme, o realismo (texturas diferentes da luz em uma mesma cena) e o onírico (fontes de luz pontuais no escuro). Nesse filme a maquiagem mais sutil do cinema foi a mais icônica. Uma gota de lágrima preta desenhada no carto direito do olho de Cabíria (remontando ao trabalho como caricaturista de Fellini) foi introduzido na sequência final do filme, anterior a sua cena do climax emocional, em que não sabemos se Cabíria tirará sua vida. Foi a junção do claro e do escuro, da música alegre e do clima trágico que o plano final em que Cabíria quebra a quarta parede do cinema (ou seja, olha para a câmera) e sorri com os olhos marejados sentimos todo a potência que o filme carregou, assim como, a força dessa mulher, que transpõe para nós esperança. Naquela época pós-guerra de muita necessidade e rancores, ainda mais significativa.
Para concluir, é justo falarmos do lado B desse filme, que foi rejeitado por mais de 10 produtoras. Foi o produtor italiano Goffredo Lombardo, quem disse descaradamente, "É um filme perigoso... Falemos francamente... Você fez um filme sobre 'vadios', outro sobre saltimbancos e um sobre vigaristas. Tem um projeto de um sobre sobre loucos. E agora apresenta-me um sobre prostitutas! Pergunto a mim qual será o próximo?", irritado Fellini respondeu "Sobre produtores!". Um outro produtor Suíço disse, "Lamento, mas é impossível. Cabíria não se casa no fim.". No entanto, foi com o produtor Dino Laurentiis, com as seguintes palavras "Que tipo! Bateu a porte de todo mundo e se esqueceu de mim...", que o filme finalmente ganhou forma física e se transformou em uma das mais icônicas obras de Federico Fellini.
Você já assistiu a esse filme? Conta pra gente.
E até a próxima.
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