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Foto do escritorPerpétua Revista

Nas entranhas de São Paulo, por Humberto


Colagem digital por Filipo Brazilliano

Eles estão caminhando há horas, não sabem onde estão e isso os amedronta. João deixa cair pedacinhos de pão seco em caso de precisarem voltar pelos assustadores becos vazios e frios. Sentam na frente de uma casa escura no final de uma longa viela e Maria choraminga:


— João, tô com fome... – implora a menininha com lágrimas nos olhos, em seu vestidinho rosa sujo, no meio fio.


As duas crianças apoiadas uma à outra, sentem o súbito cheiro de bolo, parece laranja com um toque de gengibre, seus diminutos estômagos protestam. Eles olham por cima do muro baixo e não veem movimento algum dentro da pobre casa. Entreolham-se e entram cautelosamente.


Dias antes estavam no metrô Sé e seu pai pediu para esperarem enquanto ele compraria as passagens, porém não voltou mais. Sem confiar em ninguém, João, o irmão mais velho, tentou encontrar o caminho de casa, mas acabou se perdendo. Tiveram vários dias ruins, foram perseguidos, dormiram nas ruas geladas de São Paulo e finalmente terminaram naquela viela, cansados e famintos em um bairro vazio que não conheciam.


Olham pelo vão da porta daquela casa pobre.


— Ei! Tem alguém aqui?


Nada.


Cautelosamente, os dois entram e se deparam com um delicioso bolo de laranja ainda morno e suco de limão sobre uma mesa de ripas de madeira. O casebre não tem janelas, sendo dominado pela escuridão e a umidade. Famintos, os dois se rendem ao bolo, comendo com suas mãozinhas sujas e deliciando-se com o leve toque de gengibre ralado. Uma lufada de vento os alerta e logo veem uma senhora de olhos esbugalhados, largando uma sacola de plástico, repleta de produtos baratos do mercado. A mulher se volta para a porta, passando o trinco e virando a fechadura.


Abre um sorriso desdentado, fixando seu olho, dominado pela catarata, para João.


— Meu filho! Você voltou! Voltou pra mim!


A velha o abraça, mal percebendo o medo intenso do garoto, e olha com desprezo para a menina por cima dos cabelos colados à testa suada do irmão.


— E você? Está esperando o quê? Vai pegar água pra fazer café! – ordena secamente.


Maria, assustada, obedece imediatamente.


Ao longo de algumas semanas, a menina é muito maltratada enquanto João se sente quase como um príncipe.


Ela pega no seu dedinho indicador e exclama com prazer, várias vezes ao dia:


— Você está muito magrinho Joãozinho… Coma mais um pouquinho!


E, dizendo isso, coloca em sua boca mais mingau, pastel, bolos e doces variados.


Maria, quase uma escrava da mulher idosa, leva um pontapé na costela e chora, indo para os fundos da casinha, dormir sozinha no frio do final de abril. Um cheiro leve de podridão sobe de uma vala próxima e a menina lentamente se aproxima da borda.


A menina estaca com a visão que a fará acordar berrando nos meses seguintes: várias ossadas de crianças (deduz serem crianças pelo tamanho dos ossos), meninos e meninas e pelas roupas que vestem os cadáveres.


Chorando muito, Maria se encolhe próxima a parede de madeira do casebre, aproveitando o calor morno que sai da chaminé do fogão a lenha, utilizado pela mulher de cabelos grisalhos quando acaba o gás de cozinha.


De alguma maneira, Maria consegue dormir e sonhar com os dias agradáveis, ao lado do pai, da mãe e de seus irmãos. Acorda com uma dor repentina no estômago, ao ser chutada violentamente pela mulher.


— Acorda sua vadiazinha! Vai pegar água pro café!


Chorando, ela recolhe com um balde o líquido que sai por um cano furado e coloca no fogão com presteza, ainda assim leva um tapão na orelha direita.


— Tem gás, vadiazinha! Faz no fogão!


Chorando baixinho, Maria coloca a água pra ferver e João acorda finalmente. A dieta forçada imposta ao menino pela velha, mostra resultados depois de quatro semanas seguidas. As costelas anteriormente magras estão recheadas de gordura e a senhora olha cobiçosamente.


Os dois comem e os restos são dados de mal gosto à menina pela senhora. Não foram suficientes para matar a fome da criança. Quando a velhinha sai batendo a porta por alguns minutos, Maria implora ao irmão:


— Joao! Vamos embora! Essa mulher é malvada!


O menino coça a cabeça.


— Ela nos dá comida, Maria. Ela não é malvada!


Uma lágrima escorre dos olhos castanhos e a garota levanta a camiseta suja. João quase grita ao ver o torso magro da irmã, coberto de machucados e manchas de várias tonalidades, o roxo causado pelas pancadas mais novas, até o amarelado nas mais antigas.


Olhando com medo para a porta entreaberta, Maria leva João até os fundos do casebre, onde lhe mostra a vala repleta de ossos de crianças, a menina cambaleia, sendo apoiada pelo irmão. Não se sente bem, está fraca e seu corpinho está quente, certamente febril. Finalmente o garoto percebe o perigo que correm e traça um plano para fugirem.


Assim que a mulher chega, João vai ter com ela:


— Mamãe… Eu quero que você me faça um bolo! – pede ele, fingindo-se feliz, porém assustado demais por dentro.


Ao ser chamada de mãe, a velha abre um sorriso de felicidade onde lhe faltam vários dentes, empurra a menina violentamente da sua frente. Maria bate a lateral do corpo e algo se parte dentro de seu frágil corpo. Ela dá um pequeno e ignorado grito.


A velha começa a misturar os ingredientes, enquanto os irmãos vão aos poucos se dirigindo para a saída do casebre.


A mulher coloca dentro do forno a massa crua de chocolate à espera da transformação em bolo. Perto da porta, João ajuda a irmã pequena a andar. Devido ao mal cheiro do lugar, nenhum dos três perceberam o ar saturado de gás de cozinha, cuja boca ficou aberta.


Com olhos esbugalhados e cabelos desgrenhados a idosa abaixa para acender o fogão, murmurando:


— Meu João.... Você é sempre meu Joãozinho.... Você é meu pra sempre.


Maria cambaleia o corpo ardendo em febre, com as pequenas costelas quebradas, soltas, fazendo a sua respiração ficar pesada e dolorida, ainda assim, Maria não solta um gemido sequer que possa alertar a sua captora.


A porta entreaberta da casa é um convite para que fujam, assim como já foi para entrarem, ajudando a irmã debilitada, João sai silenciosamente alcançando a rua e seguindo viela abaixo. O vento bate a porta de madeira, fechando-a.


— João? João? Manda essa vadiazinha parar de barulho senão eu mato ela… – ameaça a mulher no momento em que o isqueiro acende.


A explosão é violenta e ensurdecedora, a onda de choque, canalizada pelos muros altos das fábricas ao redor, cria um corredor que joga as duas crianças como bonecas no ar, junto com os detritos de madeira.


Sem ideia de quanto tempo se passou, João acorda com alguns tapinhas no rosto, um homem de uniforme cinza conversa com ele, mas tudo que o menino escuta é um zumbido alto. Ele se senta de repente:


— Maria? Maria? Cadê a minha irmã?


O homem aponta para uma maca onde o vulto da pequena menina é atendida pelos paramédicos. No outro dia, o caso de João e Maria é comoção nacional e seus pais vão buscá-los aliviados no Hospital Nossa Senhora do Pari, o mais próximo da rua Paschoal Ranieri, onde os dois foram encontrados desacordados após a explosão de um barraco.


João e Maria agora estão felizes, mas às vezes, durante a madrugada acordam assustados pois têm quase certeza de escutar aquela voz aguda da velha em seus ouvidos:


— Você está muito magrinho Joãozinho…



Conheça Humberto Lima


Humberto Lima é professor de geografia e sociologia, pai, escritor e apaixonado pelo gênero terror. É, também, desenhista em HQs, com gravuras publicadas em livros e revistas. Participou e organizou diversas antologias. Publicou "Saturno, o Vampiro", pela Editora Arkanus.

Com quais gêneros e temas você prefere trabalhar?

Eu escrevo predominantemente terror, porém nos últimos anos tenho diversificado e escrito sub gêneros da ficção como cyberpunk e outros. Isso me tornou um autor mais completo, por me desafiar em gêneros que não conhecia. Quanto a escolher, não é bem uma escolha, tem mais haver com sintonia, escrevo um conto de horror rapidamente, mas levei um mês para escrever um romântico. Escrevo primeiro o que amo ler.

Eu geralmente trabalho o macabro e assustador e dentro dele, o fantástico. Meu segundo livro, que sairá pela editora Quimera, é um Dark Fantasy onde pude criar um mundo de sonhos e pesadelos. Quanto aos temas eu trabalho muito On Demand, me falam o tema da antologia e eu já penso em alguma história. Eu adoro escrever sobre o medo em todas suas formas possíveis.


Quais são as suas fontes de inspiração?


Eu fui criado lendo clássicos internacionais, depois devorei os nacionais e finalmente me abri para o contemporâneo. Minhas influências foram o Poe, Baudelaire e Shakespeare que moldaram a estrutura do fantástico e do medo. Li Mary Shelley ainda adolescente, depois tive uma queda pelas tragédias gregas e finalmente li nossa literatura. Me apaixonei pelo medo com o King, Koontz, Baker, Lovecraft, dentre outros. Também tenho como livros de cabeceira alguns autores como René Berjavel (Devastação, a volta a natureza), Walter Scott (Ivanhoé) e Tim Powers (Portal de Anúbis). Gosto de inúmeros gêneros e cada um deles agrega algo à maneira que escrevo


De que forma a geografia e a sociologia interferem na sua literatura?


Eu trabalho com a geografia humanista, dentro disso eu tento subverter a regra, para tratar temas como machismo, racismo, etc. O conhecimento de um povo envolve muito estudo e respeito. A geografia me dá uma facilidade maior de entender esses povos. Já a sociologia enriquece meus contos ao tratar de temas caros a humanidade. Saber como o ser humano reage em cada cultura me dá a capacidade de fugir dos estereótipos.


No livro "Saturno, o vampiro" por exemplo, eu utilizo a imagem do bom selvagem de Rosseau, mais corrompido pela sociedade do que pelo vírus do vampirismo. Gradualmente ele deixa de fazer parte da natureza para se tornar um civilizado, ainda que seja sempre um estrangeiro em sua própria terra. Em outros contos, como as da "Macromegacidade", o personagem (e também a construção de lugar) é de uma cidade de São Paulo futurista, onde a vida não tem mais valor algum.


Seu personagem mais marcante é Saturno, o vampiro. Conta um pouco dessa história?

Eu comecei a escrever na década de 90, no antigo Orkut e em grupos como o Tinta Rubra. Criei o personagem Saturno, um vampiro índio brasileiro, mas na época, por imaturidade, não soube capitalizar o interesse dos leitores pelo personagem. O livro "Saturno, o Vampiro" veio a ser lançado em 2020, apenas. Escrevi até o começo do ano 2000 quando fui desentusiasmado e acabei parando, virei um escritor de gaveta.


Em 2015 me chamaram para participar de uma antologia pela editora Empirêo, em homenagem ao Poe e depois disso passei a publicar cada vez mais. Já tenho participação em mais de 70 antologias de gêneros diversos e estou na minha quarta organização de antologias, além de escrever roteiros para quadrinhos já publicados. Cheguei às semifinais do concurso da ARBEST, de 2020 com o conto "Opera - Uma Pétala de Orquídea", meu primeiro conto policial, publicado na antologia "O Melhor do Crime Nacional", pela editora Luva.

Como foi a concepção desse conto: "Nas entranhas de São Paulo"?

Eu participei de um desafio: reescrever contos da literatura infantil sobre uma ótica mais adulta e realista. Ele foi publicado primeiro na antologia Contos de Fadas - Releitura da Realidade, da editora Illuminare. Trabalhei algo mais próximo do jornalismo biográfico, usando como base a miséria oculta da capital paulista em seus locais ermos e assustadores. Então, pesquisei onde as crianças poderiam se perder e em quais locais buscariam abrigo. Usando o guia de ruas, cheguei a locais reais, onde esse era o tipo de vida que viviam. Juntei a fantasia com a realidade, pintando com as tintas mais escuras que pude. Isso é algo que gosto de fazer: encaixar elementos reais nas histórias a ponto do leitor ficar na dúvida se é mesmo ficção


Existe algum vem aí em mente?


Existe um universo ainda não explorado em Saturno que alcança os caçadores da chamada Organização e também uma batalha entre vampiros x lobisomens e caçadores nos próximos livros. Estou estruturando um segundo livro do Saturno vampiro que abrangerá o século XX até o final da década de 90, apresentando novos personagens e também alguns antigos. Tenho mais três livros prontos que passarão por processo de revisão, também uma distopia de fantasia infanto-juvenil que preciso organizar e dois livros em processo de produção. Também estou produzindo um mangá roteirizado por mim e desenhando pelo incrível traço do mangaká, Anderson Relmor.




Conto por Humberto Lima
Colagem por Filipo Brazilliano
Edição e revisão por Elisa Fonseca
Entrevista por Filipo Brazilliano e Elisa Fonseca

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