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Não diga seu nome, por Mylena Araújo


Era uma noite cheia de medos e calafrios. Ninguém deu um pio quando Trinta sussurrou seu nome de batismo enquanto cochilava. A líder do nosso grupo, Dois, tentou salvá-lo, mas já era tarde, as criaturas o escutaram. Ao seu comando, todos correram para as suas respectivas barracas. Eu me escondi na minha, apaguei a lamparina e esperei pelo massacre em silêncio.


Colagem digital produzida por Maitê Mendonça

Não havia estrelas no céu, só o escuro barganhando toda a luz. Em torno da clareira se ouvia o trilar insistente dos grilos. Lembrei da última aula de biologia que assisti; a professora disse que os machos cantam assim para chamar a atenção das fêmeas ou para avisar o seu grupo de que um predador se aproxima.


Em relação ao grupo de humanos super medrosos, estava mais para a segunda opção.


Comecei a suar, minhas mãos tremiam e meu coração acelerou. Mas o medo não foi suficiente para afastar a curiosidade que me cercava. "Só uma espiadinha", pensei, "não vai matar ninguém". Abri o zíper da minha barraca, ignorando o aviso que mamãe certamente teria dado se estivesse aqui.


O canto dos grilos ficou cada vez mais intenso, propagando-se no ritmo da respiração irregular de todos à medida em que o barulho de pegadas no interior da mata se convertia num áspero guincho.


— Oito...


Eu virei com o som do meu número sussurrado, e, imediatamente, tornei a atenção para a barraca vizinha à minha. Meus olhos se prenderam nos olhos castanhos de Onze.


— Ficou doida?! Os bichos vão te ver. Volta pra dentro!


Mostrei a língua para ela. Eu queria muito ver a face de um Carrasco, saber como os bichos se pareciam ou se mantinham a aparência do que já foram um dia. Entretanto, de má vontade, fechei o zíper da barraca e me deitei sobre o saco de dormir. Depois de alguns minutos, o ruído de algo sendo mastigado me despertou para o barulho que se acumulava em minha mente. Era inevitável silenciar as vozes quando resolviam me enlouquecer. E sabendo o porquê de tanto rebuliço, não ousei me mexer.


Primeiro: o som áspero de passos veio com um berro estarrecedor.


Segundo: três Carrascos apareceram no meio da clareira.


Estavam parados, farejando o cheiro de comida - gente - no ar, conscientes de que havia mais refeição do que ouviram minutos atrás. Entretanto, só um nome fora dito, e levaram Trinta embora, para o ninhário além da estrada de ferro.


Não ouvi Trinta gritar antes de morrer, talvez os bichos o tenham matado antes mesmo dele perceber que o rasgavam feito papel. Também não ouvi os outros planejando uma busca meticulosa, mas li a mente de Dois quando ela saiu no rastro dos Carrascos: desta vez os bichos não deixaram uma gota de sangue para trás.


Apesar de sermos vinte e oito – agora vinte e sete –, não estávamos em número suficiente para lutar contra as crias do Inferno. E nossos números diminuíam a cada dia.


Permanecemos quietos, reféns do medo um do outro, comprimidos à aspereza da sobrevivência. Não havia voluntários para salvar Trinta tampouco não haveria ninguém para nos salvar depois, e se tivéssemos nos metido a heróis, a essa altura seríamos nada mais que retalhos de tripas por toda parte.


Essa era a segunda regra mais importante de um sobrevivente: não se arrisque ou acabará morto.

Todos saíram de suas barracas, formando um círculo em volta das sobras da fogueira, alarmados por Dois ter nos deixado à deriva até o nascer do sol. Mesmo sendo a mais velha e experiente em caçar um Carrasco, todos concordavam que a líder não tinha parafusos na cabeça por mapear a trilha dos bichos toda vez que levavam alguém. No fundo, ela ainda tinha esperança de encontrar mais sobreviventes, quem sabe até a própria cura.


Eu estiquei as pernas um pouco e depois de observar as conversas particulares de cada um, os ruídos de suas vozes novamente me inundaram, ferindo minha mente, como ecos.


“Coitado do Trinta, era tão jovem.”


“Acha que ele vai se tornar...”


“É bem provável.”


“E se os bichos não se satisfizerem com ele e quiserem mais? E se voltarem?”


“Só voltam se você disser o seu nome.”

“Falar é fácil. Só de dizer a palavra nome, eu já penso no meu automaticamente.”


“Quem vai ficar no comando se a Dois não voltar?”


“A Dois sempre volta.”


Tapei os ouvidos, não deu certo. Eu ouvia gritos, choros, sussurros, tudo isso dentro da minha cabeça.


Às vezes não era fácil conviver com as falas.


Fui tomada pela onda de um pensamento singular. Vi na mente de Onze o martírio que ela sentia por agora ser a segunda na liderança, pois com a ausência de Dois, o segundo mais velho do grupo assume. Isso a preocupava, não tinha lembranças muito boas da última vez que liderou uma expedição.


Fiquei mal por ela e ainda mais por Trinta. O rosto sardento dele invadiu meus pensamentos; será que ele sofreu muito? Talvez tenha sido alguém da família que ouviu o som do seu nome. É, acho que não.


Sentei-me no chão, abracei os joelhos e me perdi na incerteza. Senti uma picada atrás da cabeça, como se minha consciência quisesse me avisar de algo que ninguém mais via.


Então vieram os gritos.


Levantei assustada assim que a horda de Carrascos invadiu a clareira. Estava no meio da carnificina, meu estômago azedou ao ver cabeças rolando pela grama seca. Não tive escolha, corri para longe de todos, sem me dar conta de que alcançava os limites da estrada de ferro.


O desespero me encurralou, havia uma criatura à minha espera.


Fui aprisionada pelo olhar cego do Carrasco, caí de joelhos, meus pulmões começaram a estourar. Eu me arrastei pela terra férrea igual a um verme em busca de refúgio. O bicho se aproximou, devolvendo-me o ar com a intenção de ouvir minhas súplicas, mas não abri a boca, então o Carrasco quebrou os ossos do meu joelho esquerdo. Fui arrastada estrada acima, minhas costas ardiam no atrito com o ferro e minha cabeça queimava.


Eu gritei quando achei que não mais poderia.


Que merda! Sempre pensei que viveria por mais alguns anos, mas é difícil voltar a viver com a dor das minhas tripas sendo arrancadas por bocas famintas.



Conheça a autora Mylena Araújo


Mylena Araújo é escritora cearense, nascida em Fortaleza. Se deslocou ao longo de alguns gêneros literários até se encontrar na fantasia sombria. Leia a resenha feita de sua obra "Calêndula" e prestigie a entrevista concedida pela autora clicando aqui.

Colagem da autora feita por Naiana íris (@aponteparaoser)

Links da autora Instagram / Twitter


Edição por Elisa Fonseca

Revisão por Gabriela Marra

Arte de vitrine por Maitê Mendonça


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