Por Joyce Môia
Quem nunca ouviu que devemos pensar fora da caixa? Esse conselho de criatividade está em todos os lugares, seja em filmes, séries, workshops... Mas é fato: ele não somente se mostra um tiro no escuro quando estamos no processo de criação, mas, também, bastante equivocado. Porque repare bem, meu caro escritor: grandes nomes da literatura não fizeram isso. Machado de Assis não pensou fora da caixa quando abordou traição em suas obras. A controversa J. K. Rowling não pensou fora da caixa com seus bruxos no universo de Harry Potter. Shakespeare não pensou fora da caixa quando abordou uma paixão proibida em “Romeu e Julieta”.
Nenhum deles pensou fora da caixa, mas, provavelmente, você ainda deve estar encucado. Portanto, disponho-me a te explicar mais detalhadamente acerca disso. Agora, é a sua vez: pegue um cafezinho — não há nada mais clichê que essa frase, não é? Para tal, baseio-me no livro “E se fosse diferente?... Caminhos Alternativos para despertar sua criatividade”, de Manoel Gomes e Luciano Braga. Outras fontes serão delegadas ao final do texto.
É impossível criar algo do nada
Nada surge do nada: nenhuma ideia, nenhum pensamento, filosofia e, tampouco, a arte. Tudo o que você cria é sempre parte da sua experiência de vida, do que você já viu e ouviu por aí desde criança, da cultura da sua sociedade, da sua cosmovisão e, claro, da arte que você consumiu por todo esse tempo. Nessa linha de raciocínio, tudo o que você cria é inspirado. Você não é um deus que dá vida ao novo sem precisar de uma base. Como parte da natureza, você segue a Lei de Lavoisier: “Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. E é daí que surgem artes maravilhosas. Logo, apresento-te o questionamento: se a caixa é tudo o que a gente conhece, o padrão de como tudo é feito, como pensar com o desconhecido? Como produzir com o desconhecido? Como escrever com o desconhecido?
Do tradicional temos o novo
Geralmente, quando dizem para que pensemos fora da caixa, isso significa quebrar com o tradicional. Não vou tirar o mérito, totalmente, do conselho. Decerto, é importante renovar as coisas. O grande problema desse enunciado é que ele joga a possibilidade de criar coisas novas para fora da caixa, para o que a gente não conhece, para o desconhecido, sendo que o que necessitamos para criar está dentro de nós mesmos, da nossa caixinha. Entenda, escritor: é a partir do que você já conhece que você vai criar. Você precisa transformar o que já existe, brincar com as artes tradicionais e com as que estão sendo feitas, distorcê-las, invertê-las, cometer loucuras com elas. Até mesmo se você quiser ser um contracultura no sentido mais radical do vocábulo, como os simbolistas foram em um período de preponderância de uma arte mais racionalista ou como a juventude dos anos 60 foi criando o rock e indo na contramão da música clássica, você precisa ter em mente o tradicional.
Afinal, os simbolistas só o fizeram devido à insatisfação sentida com a mecanicidade de sua sociedade (logo, queriam o oposto do que era produzido); a retomada de elementos como a presença da religiosidade (influência do Barroco) e do subjetivismo (influência do Romantismo); e à introdução de conceitos da Psicologia, que era uma nova ciência que surgia, principalmente a dos sonhos. Por sua vez, a juventude dos anos 60 só criou o rock porque a guitarra nasceu primeiro. E olhe só: esta última se derivou de um instrumento espanhol antigo chamado “vihuela”, que era a junção de “ud” e “cozba”, instrumentos ainda mais antigos, muito populares no Oriente e no Império Romano.
Das velharias, temos o novo. O velho é a matéria prima da sua produção. Então, bagunce-o! Faça uma lambança! Troque as coisas de coisas de lugar! Corte algumas coisas! Deixe outras! Mete o louco! Imagine possíveis realidades alternativas para aquilo que já há!
Aí você me pergunta: “Como eu faço isso? Isso está me soando tão distante!”. Bom, primeiro de tudo, é necessário identificar os elementos do jeito padrão primeiro, conhecer seu terreno de escrita. Se você quer transformar, não dá para reproduzir da mesma maneira. Nesse sentido, note, investigue a essência dessas artes, seu objetivo, o que defendem, o que repudiam e como funcionam.
Como exemplo, tomarei, novamente, o universo de Harry Potter por sua popularidade literária. Eis algumas de suas características:
Manifesta-se em um conjunto de livros estruturado em palavras, frases, parágrafos e capítulos;
É formatado em papéis retangulares um pouco maiores que nossas mãos;
Possui uma narrativa cronológica com cinco elementos: personagens, enredo, narrador, tempo e espaço;
Seu gênero é fantasia infanto-juvenil, realizando uma mistura entre mundo real e ficção;
Seu ponto de encanto é a magia, que, por sua vez, é protagonizada por bruxos/feiticeiros;
Além de bruxos, possui outros elementos da mitologia nórdica, como elfos e lobisomens;
Segue as estruturas da Jornada do Herói, tendo até mesmo o protagonista como o clássico “escolhido da profecia” e realizando uma paródia do conto grego de Cronos — quando o vilão recebe a profecia de que alguém irá derrotá-lo e ao tentar frustrar tal profecia, ele toma medidas que faz com que ela aconteça.
Repare que, aqui, não houve nada novo. Somente a conservação do que já estava sendo feito antes. Afinal, ao longo do século XX, milhares de histórias como essa foram produzidas. Em um piscar de olhos, já podemos citar “Nárnia”, de C. S. Lewis, e “O Senhor dos Anéis”, de Tolkien, mas, com certeza, você conhece outras. Diante disso, o questionamento é inevitável: o que, então, fez Harry Potter ter um apreço tão grande entre as pessoas, tornando-se a série de livros mais vendida de todos os tempos? O que Harry Potter fez de diferente?
Te direi a resposta, meu caro escritor: é que J. K. Rowling pegou conceitos extremamente conhecidos pelo público, mas deu uma nova dimensão a eles. Se os bruxos, na maior parte das vezes, foram representados como seres malignos, associados ao satanismo, feios, velhos, com roupas pretas e chapéus pontudos e muito distantes da realidade, J. K. Rowling aproveitou-se da onda midiática de sua época que humanizava os bruxos, como podemos ver nas séries “Sabrina, the teenage witch” e “Buffy, the vampire slayer”, e radicalizou a ideia, trouxe "a possibilidade" de qualquer pessoa entrar neste universo.
Como bagunçar sua caixa
Vamos ao segundo passo? Normalmente, é dito que a criatividade é um processo espontâneo, que não se dá para definir seu processo, que ela é natural e que alguns nascem mais abençoados do que outros nesse quesito. No entanto, esse discurso não é verídico. Pois a criatividade é um processo bastante objetivo. A maioria das artes criativas seguem padrões específicos, e aqueles que são criativos e dizem não usar método algum, também o seguem mas de forma inconsciente, sem o notarem. Nesse sentido, listarei agora 10 maneiras de bagunçar sua “caixa”, às quais, se você quiser (o que, também, recomendo), pode até mesmo usá-las ao mesmo tempo na produção de sua obra:
Inversão: espelhar o normal e encontrar o oposto. Por exemplo, se a história em que você está escrevendo é de romance hétero e o tradicional dessas histórias é o homem pedir a mulher em namoro e/ou em casamento, por que não fazer o contrário?
Agrupamento: juntar o que hoje está separado. Por que não tenta fazer uma mistura entre assuntos, gêneros e estilos tão diferentes entre si como cachorro quente e nazismo, poema e prosa e terror e comédia?
Desagrupamento: separar o que hoje está junto. Para ilustrar esse método, desafio você, escritor de fantasia, a fazer uma história que não se encaixe na Jornada do Herói.
Repetição: aumentar a quantidade ou a frequência de uma determinada ação ou prática. Por que não fazer uma história que se utilize de looping de cenas?
Exagero: radicalizar algo, levar ao extremo. Por que você não faz uma história só com clichês? Essa é a proposta do livro “O pior clichê do Wattpad”, que se encontra no Wattpad e que, sinceramente, me rendeu boas risadas.
Combinação: misturar coisas de universos diferentes. Pense em como seria legal misturar histórias de competição esportiva típicas da “Sessão da Tarde” com lobisomens ou criar animais monstruosos combinando pássaros, jacarés e leões.
Adição: adicionar um novo elemento. Que tal adicionar conhecimentos da física no seu universo?
Subtração: tirar alguns elementos do padrão. Se o comum é que, em histórias de bildungsroman, haja a presença de uma família, por que não retirá-la?
Diferenciação: explorar as diferentes alternativas dentro de uma situação. Se em histórias para adolescentes, costuma-se ter bailes de escola, por que, em vez de um baile, você não coloca uma festa junina?
Adaptação: copiar e traduzir/práticas de outras áreas. Imagina uma história no formato de um artigo de opinião ou de um processo judicial ou de uma redação do ENEM?
Amplie sua “caixa”
Não fique no comodismo. Se você quer ser mais criativo, você precisa conhecer coisas novas. Amplie seu conhecimento. Quanto maior sua caixa for, mais elementos você terá à sua disposição para bagunçar. Nessa perspectiva, estude. Conheça as artes de outros lugares também, da África, da Ásia, da Oceania, dos povos indígenas. Saia do eixo.
Investigue as diferentes culturas ao redor do mundo. Quais são seus hábitos? Seus mitos? Suas principais filosofias? Seus impasses? Procure conhecer as religiões no geral. Eu te aconselharia, se você tem uma religião, a se aprofundar no estudo dela. Por exemplo, eu sou cristã evangélica, e estudar teologia e a Bíblia Sagrada têm me auxiliado muito nas minhas histórias, porque além de me fornecer ideias para a criação dos universos, a Bíblia é recheada de variados gêneros, autores e estilos de escrita, nos quais eu posso me inspirar.
As áreas do conhecimento humano também são importantíssimas: história, matemática, psicologia, física, filosofia, economia, biologia e diversas outras. Atualize-se nas notícias. Estude política. Veja curiosidades aleatórias. Converse com variados tipos de pessoas, se for possível. Enfim, conheça. O mundo é gigante.
Mas se acalme também. Não estou te dizendo que você precisa ser um crânio para escrever ou virar um alucinado por estudo. Priorize aquilo que você já gosta para aprofundar nos estudos e vá conhecendo diversas coisas de forma aleatória e fragmentada ao longo dos seus dias enquanto você escreve. Tudo no seu ritmo.
Não coloque tanta pressão sobre si mesmo
Na maioria das vezes, as boas ideias não chegarão de primeira, e seus primeiros rascunhos não vão ser bons. Você também não precisa escrever um livro que vai inaugurar um novo estilo literário ou que vai ser uma obra prima para ser lembrada por gerações e gerações. Não coloque tanta pressão sobre si mesmo. Somente escreva.
Conheça a autora
Joyce Môia vem da terra do pão de queijo. Desde criança, escreve e imagina histórias. Publicou os contos "Quando o fogo e a água se juntam", da Antologia Outros Mundos, e o "O Sapo Falante do Biotério", da Antologia Devaneios Urbanos – ambos do Escribário. Além disso, podemos encontrar mais de seu trabalho em suas redes.
Fontes:
Comments