Por Rubens Duprat
Estreando na Netflix em 2020, no exato dia do Natal, o drama histórico Bridgerton chamou a atenção não apenas pelo retrato romântico da aristocracia britânica do século XIX e pelas tórridas cenas de sexo, mas também pela muito bem-vinda diversidade. Diferentemente das obras tradicionais do gênero, a série trouxe atores negros e asiáticos em papéis de destaque como aristocratas, todos frequentando os bailes da corte da rainha Charlotte, ela mesma de pele escura. Para ressaltar essa característica, a monarca chega a exibir um penteado que remete ao black power, inspirado na cantora Beyoncé.
Tudo isso, aliado a uma trilha sonora que, nas cenas de baile, usa covers instrumentais de músicas pop atuais como Thank U, Next, de Ariana Grande, e Girls Like You, do Maroon 5, dá à série um ar irresistivelmente moderno, que certamente ajudou a colocá-la no primeiro lugar do top 10 das produções mais vistas no serviço de streaming.
As Raízes da Rainha
Charlotte, esposa do rei louco George III, era de fato descendente de uma africana, Madragana Ben Aloandro, amante do rei português Afonso III, do século XI, segundo pesquisas de historiadores como Joel Augustus Rogers e Mário de Valdes y Cocom. Vivida pela branca Helen Mirren no clássico filme As Loucuras do Rei George, de 1994, a personagem desta vez é interpretada por Golda Rosheuvel, experiente atriz de teatro, nascida na Guiana.
Um Misto de Orgulho e Preconceito e Gossip Girl
A série televisiva é inspirada na série literária Os Bridgertons (Bridgerton, no original), escrita pela estadunidense Julia Quinn. A saga best-seller é composta de oito livros lançados entre 2000 e 2013, cada qual focado na descoberta do amor por um dos oito irmãos da respeitada família fictícia Bridgerton, sendo quatro moças e quatro rapazes, filhos da viscondessa Violet (vivida na TV pela britânica Ruth Gemmell, conhecida pelo filme Febre de Bola, de 1997). Com sua preocupação em casar os filhos, a viúva lembra muito a Mrs. Bennet do clássico Orgulho e Preconceito, da célebre escritora britânica Jane Austen.
A história também lembra bastante a longa série de livros Gossip Girl, que, lançada em 2002, deu origem igualmente a uma série de TV. Gossip Girl aborda os conflitos e romances dos adolescentes da alta sociedade da Nova York atual, narrados pela blogueira de fofocas que dá título à série, cuja identidade é desconhecida. Da mesma forma, em Bridgerton há uma figura misteriosa que conta fofocas sobre a alta sociedade, só que no período da Regência Britânica.
É a colunista de jornal conhecida pelo pseudônimo Lady Whistledown, que, com seus deliciosos comentários, é também a narradora da série de TV. Para não revelar sua identidade aos espectadores logo no início, optou-se inteligentemente por lhe dar uma voz que não corresponde a nenhum personagem. E o melhor é que, no original, essa voz é de Julie Andrews, a eterna Mary Poppins, atualmente com 85 anos. Com seu elegante sotaque britânico, a atriz ainda hoje é constantemente escalada para papéis de aristocratas.
As Polêmicas e as Diferenças entre o original e a adaptação
Não cheguei a ler os livros, mas os comentários que li e ouvi a respeito atestam que a escrita de Julia Quinn tem mais humor do que a adaptação conduzida pelo criador e showrunner Chris Van Dusen, embora ambos tenham um caráter pop. Há quem prefira mil vezes os livros, e há quem ache que a adaptação ficou mil vezes melhor.
A primeira temporada adapta a história do primeiro livro, O Duque e Eu (The Duke and I), que tem como protagonista a filha mais velha, Daphne Bridgerton, em sua estreia na sociedade inglesa. Ela é vivida na série pela britânica Phoebe Dynevor, em seu primeiro papel de destaque.
Seu par romântico é Simon Basset, o Duque de Hastings, vivido pelo zimbabuense Regé-Jean Page, de Máquinas Mortais. Rejeitado pelo pai ainda na infância por não corresponder aos seus altos padrões, ele é criado pela perspicaz Lady Danbury, interpretada pela veterana atriz britânica Adjoa Andoh, de Invictus.
Ressentido, no leito de morte do pai, Simon jura não lhe dar nenhum descendente, como seu único filho. Com isso, ele está determinado a jamais se casar quando conhece Phoebe, que, por sua vez, naquele momento quer atrair pretendentes para se casar logo.
A princípio, apenas amigos, eles decidem ajudar um ao outro fingindo que são um casal durante algum tempo. Assim, ele afastaria temporariamente as moças que insistiam em incomodá-lo na esperança de se casarem com ele. Ao mesmo tempo ela atrairia a atenção de rapazes, que, ao vê-la como par do solteiro mais cobiçado da sociedade britânica, julgariam que ela tem valor, e se interessariam em se casar com ela depois que os dois fingissem romper o namoro.
Uma diferença importante entre o original e a adaptação é que, no livro, há uma polêmica cena de estupro de um rapaz por uma moça, que na versão para TV foi suavizada para não ser caracterizada como estupro e, justamente, evitar a polêmica.
Outra diferença é o fato de que, na adaptação, a identidade de Lady Whistledown é revelada aos espectadores já no final da primeira temporada, enquanto na série literária isso acontece apenas no quarto livro.
Mas a principal diferença é exatamente a diversidade presente na adaptação, que não existe nos livros. Entre outras figuras, além da rainha, tanto o Duque de Hastings quanto seu pai e a Lady Danbury, na Netflix, são negros, ao passo que, no original, todos são brancos e a rainha nem é citada.
Color-Blind ou Color-Conscious?
Em discussões sobre a adaptação, tem-se falado muito em color-blind casting (algo como "escolha de elenco cega à cor") ou nontraditional casting ("escolha de elenco não-tradicional"), nomes dados à prática de escalar um elenco sem levar em consideração a cor ou mesmo o gênero do ator.
No passado, color-blind casting foi sinônimo de whitewashing, "branqueamento", como é conhecida a escalação de brancos como personagens que deveriam ser de outras etnias), ou mesmo de blackface e yellowface ("rosto preto" e "rosto amarelo", respectivamente, o uso de maquiagem por atores brancos para interpretarem personagens negros ou asiáticos), evidentes reflexos de racismo estrutural.
Em tempos mais recentes, pelo contrário, a prática tem se traduzido numa bem intencionada busca por representatividade. Foi o caso, por exemplo, do premiado musical da Broadway Hamilton, que, regado a hip hop, retrata a vida de Alexander Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, com um elenco predominantemente formado por latinos, negros e asiáticos interpretando figuras históricas brancas.
Mesmo assim há quem condene essa prática, usando o argumento justo de que apenas mudar a cor dos personagens não basta para garantir representatividade, pois há profundas implicações da cor na experiência de vida de alguém, e isso deveria se refletir na trama. Por esse motivo, há quem prefira o termo color-conscious casting ("escolha de elenco consciente de cor"), sugerindo que essas implicações sejam levadas em consideração.
Por outro lado, para o próprio público não branco pode ser incômodo ver sempre os personagens negros sendo alvo de discriminação racial, ainda mais quando buscam diversão escapista. Em vez de sempre olhar para os traumas raciais, esse público quer ver atores não brancos protagonizando tramas em que o racismo não seja uma questão, inclusive tramas de época.
A Visão de Shonda Rhimes
A poderosa executiva afro-americana Shonda Rhimes, criadora de Grey's Anatomy e Scandal e dona da companhia Shondaland, responsável por produzir Bridgerton para a Netflix, é conhecida justamente pela diversidade de suas produções e por evitar colocar personagens não brancos em tramas que girem em torno de racismo. Em suas séries de TV, casais inter-raciais podem enfrentar diversos problemas, mas nunca relacionados à raça. É uma forma de se ter representatividade sem o peso de ter a discriminação racial como tema.
Ainda assim, pode-se dizer que em Bridgerton a escolha de elenco foi consciente. Não ocorre uma mudança radical na forma como são retratados os personagens que se tornam negros na adaptação, e há uma explicação para a existência de nobres negros naquele contexto. É comentado brevemente que a coroação de uma rainha de pele negra possibilitou a inclusão de outros negros na corte, e fica claro que, mesmo assim, apenas negros excepcionais foram agraciados com títulos de nobreza.
Isso de fato aconteceu? Havia nobres negros na corte da rainha Charlotte, ou isso é só uma fantasia? Eu não teria como dizer. Sabemos que, devido ao racismo, a importância dos não brancos na História foi muitas vezes apagada. Seja como for, eu certamente não teria gostado tanto de Bridgerton se não fosse pelo toque da diversidade.
Vi algumas pessoas comentando que não entenderam porque a série deu tanta importância ao papel da rainha, se nos livros ela mal é citada, agora eu entendi porque: para explicar a existência de nobres negros na Corte. Que sacada genial!