“Para onde a voz do futuro te leva?”
Oculi é um conto de ficção científica de trinta e quatro páginas que te conquista na primeira frase: “Em poucos minutos, Olívia teria uma visão do próprio futuro.” A partir dessa frase, muito dificilmente você conseguirá parar de acompanhar a história da protagonista e seus dilemas.
Olívia é uma artista iniciante e como tal, possui as dúvidas de todo artista iniciante. Carregando esses sentimentos, ela decide participar do teste do Oculi, uma tecnologia que permite ao usuário ver, com seus próprios olhos, seu futuro. Entretanto, esse contato pode alterar sua linha do tempo para sempre.
Peço perdão aos leitores por não conseguir ser impessoal nessa resenha. Esse conto mexeu comigo de uma maneira que poucos textos chegaram a fazer. Me senti como no fim do filme “A chegada”, que tira o seu chão e traz reflexões sobre toda a sua vida enquanto os créditos sobem. Oculi faz isso. Me deparei com a tela do Kindle na página “Sobre o Autor” por alguns minutos, digerindo toda a excelente experiência que o conto me proporcionou. Isso ocorreu por um motivo que foi o meu calcanhar de Aquiles: Olívia é uma artista.
Se este é o primeiro artigo que lê nessa revista, em poucos minutos perceberá que todos os envolvidos são extremamente apaixonados pela arte, seja ela qual for. Contistas, designers, desenhistas, leitores assíduos, escritores. Todos engajados em suas formas de manifestar a arte que habita dentro de si. Sendo assim, a protagonista reverberou muito forte em mim, criando uma identificação quase imediata, afinal, os medos dela são os mesmos medos que eu tenho e que, creio eu, a grande maioria dos artistas iniciantes tem: Será que fazer arte é o que eu devo fazer?
Óculi, ao meu ver, fala de ansiedade, do medo do futuro. Quantas vezes você já ouviu uma voz na sua cabeça dizendo para desistir de algo antes mesmo de fazer? Enquanto escrevo essa resenha, a voz continua dizendo que o texto está ruim, que eu deveria desistir. O conto é um exercício que nos ensina a lidar com essa voz, com esse desafio. Nos mostrando, novamente, como o filme “A chegada”, que o importante é a jornada, com todos os sentimentos positivos e negativos que esse caminho nos trás. O futuro depende da paixão do passado e o passado depende dos sonhos futuros.
Como se já não bastasse a experiência reflexiva que o conto proporciona, ainda temos o excelente uso de pronome neutro para um personagem de gênero fluido. Foi nesse conto que eu percebi a importância da linguagem para a forma que vemos um personagem. Em minha mente eu não conseguia definir um gênero para aquele personagem, o que faz todo sentido, afinal, essa é realmente a ideia. Isso é de uma sensibilidade e gentileza tamanha!
Óculi é um daqueles contos que toca fundo na alma, muda perspectivas e pensamentos. Recomendo para todos os jovens adultos e adultos amantes de ficção científica.
Conheça a autora
Clarice França é formada em Rádio, TV e Internet pela Cásper Líbero, em São Paulo. É escritora independente, roteirista de quadrinhos e editora do site Nebulla. Participou das coletâneas de quadrinhos Gibi de Menininha 1 – Histórias de terror e putaria e Gibi de Menininha 2 – O Faroeste é mais Embaixo, ambas vencedoras do Troféu HQ Mix. Escreveu na coletânea RPG Indagações e tem duas obras publicadas: A Guardiã do Sonhar e Oculi.
Conta um pouco de sua carreira na internet trabalhando com cultura pop?
Sempre me interessei por escrever histórias. Fiz rádio TV. Abri o blog ideias em Roxo no ano de 2013. Em 2015 eu conheci a Rebeca Puig e lançamos o Collant sem decote. E em 2016 eu entrei na Quanta academia.
Germana Viana estava com a ideia de fazer o gibi de menininha com a Camila Torrano. Por ser mulher, achavam que ela só sabia desenhar coisas fofas, e o Gibi de menininha nasceu dessa brincadeira. Minha primeira história no Gibi é Fome, uma vampira que está se descobrindo. A gente lançou em 2018 quando rolou o catarse. Foi sucesso. Ganhamos o prêmio Ângelo Agostini na categoria “melhor lançamento” e o troféu HQ Mix na categoria “melhor publicação Mix”. Em 2019 fizemos o Gibi de menininha 2, que mistura terror, putaria e faroeste. Foi indicado para várias coisas.
Participei do Dossiê Bizarro, da Script editora, gênero terror também, desenhada pela Germana Viana, baseado em fatos reais. Então eu peguei uma história que minha avó ouviu sobre espíritos.
O que te atraiu para o mundo da literatura?
Com 11 anos eu decidi que seria escritora. Comecei a escrever um livro, mas foi só em 2018, quando o Collant sem decote passou por uma mudança e virou Nebulla que desenrolei. Não queríamos ser somente as mulheres que falavam sobre diversidade, mas infelizmente com as coisas como estão, resolvemos falar de novo.
Pensando em fazer uma novel no site Nebulla, eu comecei a escrever A Guardiã do Sonhar e na CCXP 2020 eu fiz uma versão para minha loja, que está agora na Amazon. As recepções de quem estava lendo foram bem legais.
Quais gêneros escreve e por quê os escolheu para trabalhar?
Eu gosto muito de fantasia, que sempre foi onde eu me senti mais confortável. e Oculi me fez ter uma visão diferente sobre Ficção científica. As pessoas me conhecem muito como escritora de terror, o que é estranho porque sou muito medrosa. O Stephen King também é muito medroso, isso de certa forma me conforta, porque dá pra ser um autor de terror tendo medo da própria sombra.
E quanto a temáticas, existem algumas recorrentes?
Sonhos. Eu mesma sou uma pessoa que tem muitos sonhos e pesadelos, tenho uma relação complicada com o sono. Carla foi baseada num pesadelo que tive.
Outro ponto em comum são os personagens que não querem lidar com um problema ou insegurança/medo e são forçados a lidar de uma forma ou de outra. E gosto muito de construir protagonistas femininas. Por sentir uma falta de representatividade nas minhas leituras.
Quais autores e obras servem de referência e influenciam sua narrativa?
A primeira referência é o Neil Gaiman, mesmo quando eu não gosto, eu gosto. Eu também gosto muito da N.K. Jemisin. Não sei se vocês viram o discurso dela quando ela ganhou o Hugo. Eu gosto da fantasia e de como ela cria situações complicadas na vida dos personagens dela. Eu gosto muito da Ursula K. Le Guin, Octavia Buttler, de Nacional eu gosto muito do Eric Novello, não só das mensagens gerais como das políticas.
Outra referência para mim é a Germana Viana, primeiro que é uma pessoa fantástica e que confia muito em mim. Isso com certeza me influenciou demais a seguir em frente. Eu gosto muito das diversidades de suas historias, de como ela mistura terror com outros temas e do humor. A Germana tem uma história chamada "As empoderadas", lançada pela Jambô em 2018, que você sente muita brasilidade. Ela é uma profissional que abriu portas para muitas mulheres, sabe. Eu lembro de quando ela ganhou prêmio no HQ Mix e falou que um dos objetivos dela era encher o palco só com mulheres. Foi isso que ela fez. Uma pessoa muito forte e dedicada, que escreve e desenha muito bem, pessoa profissional.
A Renata C B L é alguém que gosto muito também, adoro como o desenho dela é bem característico. É inconfundível. Eu quero muito um dia ter essa facilidade de ser identificada na minha escrita. Ela é uma pessoa que eu vi evoluindo com o tempo. Sempre soube contar historias muito bem, mas ela foi melhorando e explorando as coisas que ela gostava.
Sou muito fã das artes e do humor que a Mari Santtos produz. Ela tem tirinhas cômicas, mas ao mesmo tempo ela consegue encaixar o traço fofinho no terror. Ela tem umas ideias muito legais. Gosto demais das coisas que ela se propõe a fazer.
Gostei muito de como a Giu Domingues lidou com o livro Luzes do Norte. Ela fez uma parada com o Luzes que é impressionante. Depois de ser rejeitada em vários lugares, decidiu fazer uma pré-venda incrível, pois manja demais de marketing e explodiu. Editoras que tinham recusado antes foram atrás dela por conta disso. Então eu admiro a forma como ela se coloca no mercado.
Gosto muito das temáticas que a Alice monstrinho trabalha, a série Bad Omen que ela criou é incrível. Se trata de uma série de quadrinhos de terror sobrenatural com vampiros e lobisomens, baseado em RPG e literatura clássica de terror. Ela foi uma das primeiras pessoas que vi quando cheguei no mercado dos quadrinhos. Pensei “Caraca! quero fazer as coisas como ela”. Uma vez ela falou o seguinte: “Não, arte você aprende, não tem isso de nascer com dom, é um oficio”.
Acho maravilhosa a sensibilidade que a Giulia Moon tem escrevendo ficções de vampiros, principalmente porque ela sabe balancear a violência na narrativa.
Conta um pouco sobre suas obras publicadas?
A Guardiã do Sonhar - conta a história da Lucy. A história se passa em São Paulo, numa cidade subterrânea. Quando Luci descobre que sua irmã desapareceu, ela precisa mudar sua vida completamente e ir até o Ninho, a cidade mágica no subterrâneo de São Paulo, para descobrir o que aconteceu com ela. Para isso, Luci precisa enfrentar seus medos e assumir um dos papéis mais importantes daquela sociedade: o de guardiã do Sonhar.
Oculi - A história da Olivia, uma pintora que aposta na carreira de artista e ela participa desse teste pra ver a vida dela dali a dez anos, mas não é o que ela queria, além de ter efeitos colaterais por causa do uso da tecnologia.
Como foi a concepção e o processo de escrita de Oculi?
Eu escrevi o Oculi quando eu fui participar de um edital que aceitava ficção especulativa. Foi quando eu recebi um email de mim mesma. Calma, explico.
Lá em 2016 eu tinha escrito um email para mim mesma, para receber dali a 5 anos. Eu estava muito desmotivada na época, vivia na cama chorando e questionando todas as minhas decisões de vida. Daí li esse email, onde vi uma Clarice muito empolgada com tudo. Era uma Clarice de 22 anos, muito esperançosa. Muita coisa havia mudado desde então, e eu fiquei com aquilo na cabeça, que eu precisava escrever por ela.
Pensei num conto com essa temática: E se existisse uma tecnologia que a gente pudesse se ver no futuro?
Pergunta do Mateus Cantele: Quando li Oculi, senti uma grande proximidade com a temática da Ansiedade. Isso procede?
Eu não sei se considero a Olívia uma pessoa ansiosa. Ela desenvolveu a depressão ao longo dos anos. Qual é o assunto que mais deixa o artista ansioso? Acredito que seja essa possibilidade de dar tudo errado. Eu sinto que até inconscientemente eu não quis passar isso com clareza. Eu tento não deixar narrativamente as coisas abertas, mas acredito que deixar algumas coisas sem explicação é interessante. Tem coisas que precisam ser explicadas, mas tem coisas que você precisa deixar aberta.
Pergunta de Mateus Cantele: A experiência de ler sobre um personagem que é sempre referido em pronome neutro foi algo revolucionário na minha mente. Como o pronome não possuía gênero, a imagem do personagem flui, mantendo apenas as características físicas e personalidade. Achei isso formidável, parabéns! Você teve alguma dificuldade em criar esse personagem?
Eu li há um tempo atrás um texto no médium sobre Escrever em gênero neutro em Português. Eu sou da opinião que a língua muda. Mas realmente é uma coisa que está fora do nosso dia a dia. Tem algumas pessoas que escolhem utilizar.
Pela influência de meu amigo Carlos Norcia publicado em dezembro de 2020 na edição 3 da revista Mafagafo com um conto em gênero neutro. Inspirada por ele eu resolvi fazer também.
Foi um desafio, mas acho que foi um desafio necessário. Eu queria que Cali Fosse um personagem muito esperançoso.
Como foi sua aproximação com a roteirização de quadrinhos?
Através das fanfics. Eu cheguei a postar no tumblr, eram coisas com Dragon Age. Às vezes o que acontecia é que eu jogo muito RPG, daí eu criava fanfics na hora em que estava jogando. Eu sempre esqueço do que escrevi. Eu acho que fanfic ajuda muito.
Em 2016 o que aconteceu foi que eu queria saber contar histórias de todos os jeitos que eu podia. Entrei na Quanta Academia de artes, porque eu sabia escrever, sabia criar uma estrutura em 3 atos, então eu decidi escrever um roteiro de quadrinhos. Aprendi então a visualizar as cenas e descreve-las da melhor forma. O fato de eu ter aprendido um pouco de fotografia na faculdade me ajudou a escrever roteiro de quadrinho também.
Me fala um pouco sobre o Gibi de menininha?
O álbum “Gibi de Menininha – Historietas de Terror e Putaria” traz seis histórias originais e autênticas, em que a mulher é a protagonista, sem preconceitos, receios e pudor, um livro que apresenta a real força feminina. Artes singulares e roteiros excepcionais fazem o leitor se prender do início ao fim, dando ênfase até para a página de apresentação das historietas, com referências incomparáveis, além de rimas e metáforas inigualáveis para convidar os leitores a abrirem suas cabeças, almas e corações, expressando o poder das mulheres, regado a muito terror, humor e putaria.
O Gibi de Menininha está em sua terceira tiragem e já ganhou dois prêmios: o troféu HQ Mix na categoria "melhor publicação mix" e o prêmio Angelo Agostini na categoria "melhor lançamento".
Já o “Gibi de menininha apresenta” traz histórias solos e curtas de vinte páginas, para ser mais acessível e com papel mais barato. O meu personagem é Carla, uma moça que recebe um espelho de presente da mãe e várias coisas bizarras começam a acontecer pela casa. Esse foi o meu primeiro roteiro solo.
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