A Ruína de Noltora é uma trilogia de fantasia sombria escrita pelo autor M. P. Neves com dois livros já publicados, onde acompanhamos a jornada de vingança de Moira tentando sobreviver nas áreas inóspitas da terra arrasada e os dilemas de Hakim, o novo deus rei de Var Khalad, e lidando com o ataque constante de criaturas abissais que ameaçam a hegemonia do maior império de Noltora.
Em “Máscaras para os mortos”, primeiro livro da trilogia, somos apresentados aos protagonistas, que dividem os pontos de vista do livro, intercalando suas histórias que, a princípio, parecem ter pouca conexão mas, com o passar dos capítulos, entrelaçam-se em uma trama maior e ameaçadora. Moira, uma filha do povo das cinzas, tenta sobreviver na Terra Arrasada, parte do continente que, devido a eventos passados da história deste mundo, tornou-se um lugar inóspito e agressivo. Assim, os diversos povos bárbaros que ali vivem, tentam sobreviver por meio da espada e da força. Dessa forma, Moira é pragmática, decidida e forte. Forjada pelas chamas, Moira busca vingança contra o Império de Var Khalad, que dizimou violentamente seu povo. Em contrapartida, Hakim, um guerreiro escolhido pelos altos sacerdotes Khaladinos para assumir a Máscara do Deus Rei, busca entender o peso do manto que carrega, enquanto assume a responsabilidade de ser o bastião da humanidade contra os abissais. Povos dos mares que buscam invadir Noltora e conquistar o continente para si. É nesse ambiente fantástico que acompanhamos o desenvolvimento desses dois personagens que, com o decorrer da história, vão percebendo seu papel no mundo agressivo em que vivem.
Ainda falando sobre os pontos de vista, M. P. Neves sabe criar vozes narrativas muito distintas o que torna a leitura instigante. Moira, como dito acima, é decidida, logo, usa frases curtas, é direta, pragmática. Já Hakim é um imperador, letrado nos conhecimentos mágicos desse mundo, então sua voz narrativa é mais rebuscada, com períodos mais longos e complexos. Tudo isso auxilia a desenvolver os personagens extremamente carismáticos que o autor criou. Expandindo para a camada além dos protagonistas, temos coadjuvantes que roubam a cena diversas vezes devido ao seu carisma inesgotável. Jarisev e seu irmão Morsov são um bom exemplo disso. M. P. Neves sabe criar e desenvolver personagens relacionáveis, que fazem com que nós leitores nos preocupemos com os rumos de cada um. E isso é o ponto chave para essa história.
Assim como o primeiro livro, Asas sob o abismo, segundo livro da trilogia, também adota a estratégia narrativa de Character Driven, ou seja, a história é conduzida pelo desenvolvimento e interação dos personagens, enquanto o enredo revela-se a partir dessas interações. Pessoalmente falando, admiro bastante quem consegue criar histórias utilizando esse recurso narrativo, pois o fio condutor da história não é a trama em si, mas a nossa vontade de descobrir mais sobre cada um desses personagens e como eles enfrentarão as ameaças que aos poucos vão se revelando.
Além do ambiente sombrio que esta fantasia nos traz, o autor se aproveita do grande mistério que é a trama para criar um ambiente de horror cósmico, capturando a nossa leitura, já engajada pelos personagens, de forma definitiva, tornando-se muito difícil largar o livro até concluirmos a história. Os bons ganchos no final dos capítulos e as reviravoltas do enredo fazem dos dois livros uma leitura fácil, divertida e instigante.
Por fim, é impossível falar de “A ruína de Noltora” sem mencionar os sistemas mágicos criados pelo autor. Sendo um grande fã de carteirinha autoproclamado, M. P. Neves bebe da fonte criada por Brandon Sanderson e desenvolve dois sistemas de magia complexos e consolidados no mundo fantástico de Noltora. A Necromancia e a Taumaturgia são duas formas distintas de magia, com suas regras próprias e filosofias. Apesar de complexos, os sistemas são muito bem integrados à história, o que faz com que aprendamos no decorrer da leitura como eles funcionam. Além disso, os sistemas são parte fundamental da narrativa, deixando de ser um recurso e passando a ser parte funcional do enredo.
“Máscara para os mortos” e “Asas sob o abismo” são livros divertidos, intrigantes e muito bem escritos. Não me assustaria ao ver esses livros se destacando futuramente como grandes clássicos da literatura fantástica. “A ruína de Noltora” puxou uma cadeira e sentou-se orgulhoso ao lado das grandes fantasias nacionais. Só para levantar-se, momentos depois, para sentar-se ao lado dos grandes nomes da fantasia geral.
Sendo um mundo rico e bem construído, recomendo fortemente a leitura de “A Ruína de Noltora” e de todos os outros livros que contemplam este universo, como o livro de contos “Relatos da Ruína” que entrará em financiamento coletivo ainda esse mês. É um tesouro para os amantes de fantasias épicas, sombrias e de horror cósmico.
Conheça o autor
Nascido em Salvador, formado em Direito e mestre em Estudos de Linguagem pela UNEB, M. P. Neves é autor de fantasia. Com sua escrita, pretende cativar o público através de histórias emocionantes, com temas ao mesmo tempo instigantes e perturbadores. Sua trilogia "A Ruína de Noltora", mescla a fantasia e o horror para criar um universo sombrio, mas apresenta protagonistas dispostos a enfrentar os perigos desse mundo hostil.
M. P. Neves, conta pra gente como você veio parar nesse mundo literário?
Desde muito cedo me envolvi pela literatura fantástica. RPG, Magic, Dragão Brasil, HP, Senhor dos Anéis, fantasias contemporâneas... Eu era muito fã de quadrinhos na infância, e tinha aquelas revistas sobre dinossauros que também adorava. Então já tinha o hábito de ler, mas acho que o primeiro romance que li por prazer foi Harry Potter e a Pedra Filosofal. De lá pra cá, não parei mais. Emendo um livro no outro desde os 12 anos, mais ou menos.
Já como escritor, por várias vezes tentei produzir algo próprio, geralmente quando lia alguma coisa que me impactava muito. Mas eu resolvi me dedicar de verdade a escrever um romance durante o mestrado, em 2017 e com todo o suporte de minha esposa, quando terminei de ler Oathbringer, do Brandon Sanderson. A obra é tão empolgante, tão bem construída, que me deu o impulso de tentar criar algo que causasse nos outros a sensação que eu senti ao ler o livro. Máscaras para os Mortos começou a nascer aí.
Muito legal, você citou Sanderson, têm outros escritores que também trouxeram influências positivas?
Brandon Sanderson com certeza me influenciou muito na estrutura e no estilo de história. Ele compõe os livros dele de uma forma muito atrativa pra mim, e eu me espelho no jeito dele contar histórias.
De escritores, o Lovecraft me influenciou (antes de saber que ele era racista), porque a sua história tem um elemento fantástico, mas o contexto todo que ele constrói passa uma sensação de real, o que imerge o leitor, para que quando o fantástico apareça, ele cause mais impacto.
Na prosa e nos temas, tenho influência de um poeta: Augusto dos Anjos. Pra mim, ele é o melhor poeta brasileiro e eu releio Eu e outras poesias rotineiramente. Alguns poemas sei até de cor. Ele misturava um jargão médico-biológico, filosofia budista e um pessimismo geral que eu simplesmente amo. Acabo exercitando bem o vocabulário por causa dele.
O Stephen King e o Clive Barker têm uma compreensão do terror também que eu adoro, e acabo infundindo nas minhas fantasias. E o Bernard Cornwell me inspira a escrever cenas de ação épicas.
Voltando um pouco, M. P. Neves, você diria que a formação que você escolheu influenciou a sua escrita?
Acredito que o direito me trouxe uma resistência na hora de ler. Consigo ler muito em um dia, sou de leitura lenta mas tenho muito resistência. A parte do direito auxilia um pouco na construção de mundo de uma obra, também. O direito ajuda o escritor a ter limites.
Fiquei curiosa quanto a esses limites, pode explicar um pouco mais?
Você aprende o básico sobre como funciona os tipos de governo. Eu não precisei criar uma estrutura governamental do nada. Já quando você não sabe sobre um assunto e começa a suprir as lacunas de seu conhecimento com criatividade, ela meio que transborda e você vai perdendo o foco. Inventando coisas novas que não fazem sentido, perdendo a verossimilhança.
E a área de Estudos da Linguagem, também te influenciou na escrita?
Eu estudo a linguística na parte dura, não entro em fonemas e morfemas, é mais a parte teórica. Eu penso o direito como uma linguagem para estruturar a comunicação e estabelecer poder. É uma forma de linguagem, por isso que fui para a linguística, porque queriam tratar aquilo como ciência mas era mais uma questão de linguagem.
"Tudo que foi dito já existe", Michel Pêcheux, filósofo da linguística. O que mais a linguística trouxe foi essa questão de que todas as histórias já existem mas tudo é resgatado. A humanidade tá sempre se reciclando.
Você citou três gêneros que te influenciaram, a fantasia, a ficção cientifica e o terror, e acabou escrevendo fantasia sombria? Por que você os escolheu?
A fantasia tem o poder de levar nossa imaginação ao limite. O terror e o sci-fi também. São extrapolações extremas da realidade, e permitem discutir vários temas sem precisar lidar com algumas cargas históricas ou culturais que os tornam pontos contenciosos. Mas se eu tiver que escolher um motivo para ter me tornado leitor e escritor de fantasia, eu diria que é porque a realidade não me basta.
"A realidade não me basta" achei forte essa frase.
Parece chavão mas é verdade. A vida real pode ser incrível, mas nem todos têm acesso às melhores partes. A maioria de nós não vai conseguir aproveitar tudo que há pra se ver, viver e aprender. A literatura remedia isso, um pouco. A fantasia permite experimentar ainda mais, coisas que nem a realidade proporciona.
E como foi a construção de suas obras? Quais elementos apareceram com mais recorrência?
Reuni todos os elementos que eu mais gostava para criar minha própria história. Puxei para a fantasia sombria, para o horror cósmico. Não quis trazer machismo, estereótipos, quis escrever pessoas diferente de mim, para viver outras experiências. Foi um exercício muito divertido.
Eu gosto de falar sobre perda e sacrifício, sobre heróis marginais (ou marginalizados) e sobre as mentiras que contamos e que contam para nós, sejam mentiras históricas, institucionais ou as autoilusões que usamos para atravessar o dia sem surtar.
Estou sabendo que existem algumas novidades para chegar, né?
Isso. Pela Editora Virafolha estão chegando duas obras por agora, uma antologia de contos no mesmo universo de Máscaras para os Mortos, mas que não precisa ler o primeiro livro para entender. Uma espécie de "universo expandido. E o último volume da minha trilogia, concluindo a história do Máscaras. O livro vai se chamar "Nêmesis na Necrópole".
Para finalizar, tem algo que você gostaria de acrescentar para os leitores da Perpétua?
Quero recomendar a comunidade de escritores nacionais. É uma galera muito legal, quem lê a revista acho que já faz isso, mas recomendo mesmo acompanhar a comunidade e os escritores nacionais. Trazem habilidades incríveis.
Resenha por Mateus Cantele
Revisão por Maria Eduarda
Entrevista por Filipo Brazilliano
Edição de imagens e texto por Elisa Fonseca
Sobre Mateus Cantele
Mateus Cantele é professor, escritor e criador compulsivo. Publicou o conto "A valsa silenciosa" na Tokyo Defender , "Eu sempre quis ser Conto" na Faísca Mafagafo, "Divina Obsolescência programada" na Pulpa da Escambau editora e "A espada foi a lei" na revista Perpétua. Lançou recentemente o livro Apóstolo de Maria. Gosta de queijo minas, ficção científica e espera que a Matrix não o delete antes de publicar seu próximo livro.
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