Certo sentimento me domina, talvez seja desconfiança, ou, como clinicamente é comum dizer, apenas ansiedade. É algo parecido com o abandono que pode existir quando se é o único a enxergar em uma terra de cegos ou com a indiscrição do olhar do idiota para a vida, no exato momento em que é chamado de idiota enquanto acham que o próprio não ouve. É difícil descrever tal sentimento, saber o momento que ele aflora é bem mais simples — pois essa coisa desconhecida nos surpreende assim que é desvelada.
A hora exata só Deus sabe. Estava em viagem e fui atacado pela força da natureza, que me convidava a encostar o carro e aliviar a bexiga em um dos postes da entrada de uma cidade do interior. De um lado havia apenas mato, do outro um agrupamento periférico em que se fundem, nos moradores, a sensação de que são pertencentes à classe privilegiada, com a crença de que não estão expostos aos perigos da violência dos viajantes. Contudo, quem os enxerga, se é que os enxerga, não sabe se aquele conjunto é um convite para entrar na cidade ou para voltar de onde veio.
Continuando a fazer aquilo para que a humanidade foi criada — comer e beber, para depois pôr tudo para fora —, algo me chamou atenção. Olhei ao redor e, próximo às casas, vi um carro branco, desses de carregar sorvete, um pequeno furgão. O motorista com a pele bronzeada e o braço esquerdo apoiado na porta, tentava mostrar algo para um senhor que se encontrava visivelmente alterado.
Você que está lendo deve esperar algo que justifique minha necessidade de narrar esse pequeno fato cotidiano, não posso tirar-lhe a razão. Porém, o que fez com que a cena ficasse registrada em minha memória foi o que ocorreu a seguir, pois se não fossem os gritos daquele senhor — Você está aqui só de saque, para roubar o que é meu! — nada disso estaria sendo escrito. Ainda mais porque, logo em seguida, o senhor, até então inofensivo, mostrou uma arma de cano comprido e estendeu-a em direção à cabeça do motorista.
No interior do carro não houve qualquer resposta. O condutor apenas olhou para aquele louco encostado na porta do carro, impedindo-o de abrí-la. Sua expressão não denotou surpresa, nem medo, apenas cansaço, e algo que fez o velho se afastar; pareceu somente uma dureza na fisionomia, daquelas que encontramos em pessoas que suportam grandes pesares com austeridade.
Por um instante o tempo parou. De um lado o condutor aguardava a oportunidade para manobrar o carro e o velho ainda não se decidia em atirar. Imaginei ter ouvido um tiro, mas foi apenas minha imaginação. Com a mão livre, o senhor desferiu um soco no rapaz e soou como se tivesse acabado de bater em uma armadura de aço.
Cansado de argumentar, o motorista apenas recebeu as injúrias como quem tem que carregar o peso da cabeça e dos braços. O senhor voltou a ameaçá-lo com a arma, porém a reação que teve foi um lento manobrar do carro, que foi e voltou até alinhar-se com a pista, até ter condição de retornar à rodovia. Aquele rapaz passou por mim, mas não me viu; seu olhar não transparecia tristeza, nem desconforto. Ele aceitou o peso daquela injúria com a certeza de que aquilo não era para ele, contudo a colocou nas costas e foi procurar um local para despejá-la.
Desde aquele dia, esse sentimento me domina, é uma desconfiança com a sobra, um temor contra o vento, uma espera, pois a cada momento posso ser o escolhido do destino a receber aquilo que não me cabe. Surge como um ressentimento contra ações das quais ainda não fui alvo, e termina como uma vingança contra elas mesmas, que querem me ver desprevenido.
Ainda não há um nome para ele. Se existe, desconheço. Estou na mesma situação de outro jovem que foi ao psicólogo e depois de ouvir a famosa pergunta: N que te trouxe aqui? Não soube responder.
Caso ele tivesse a sorte de ter nascido escritor, seria capaz de não deixar o profissional sem resposta. Ele poderia responder: um pouco da ação do vento, da sorte da vida, dos problemas sociais, do perigo urbano ou, simples e ironicamente, minhas pernas. Porém, o que o aspirante a Freud ouviu foi um “não sei” seco, sem entonação ou vida. Quer dizer, vida havia, não tinha como não existir a vida naquele corpo que respondia ao homem sentado à sua frente. Também não é uma vida desistente, que luta contra a vontade de morte, mas sim daquele que cansou, e toda manhã tem que lidar com o peso da cabeça, e quando dorme sonha com o paraíso que infelizmente e provavelmente nunca experimentará.
Eles, o paciente e o psicólogo, passaram cinquenta minutos olhando um para a cara do outro. Finalmente, quando o timer soou indicando o fim da consulta, o jovem se levantou, apertou a mão do outro e agradeceu, pois não sabia o que fazer com aquele peso.
Se esse peso dos problemas contemporâneos residem na mente ou no coração, pouco importa. Certamente a mente faz aquilo pelo qual foi feita e graças a Deus o coração não se atreve a fazer aquilo pelo qual não foi feito, pois, como disse o grande Pessoa: “O coração, se pudesse pensar, pararia”.
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