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Foto do escritorBreno Valentino

Sobre a sensibilidade contemporânea

Atualizado: 4 de ago. de 2021



Planejava iniciar esse novo ensaio com uma frase bombástica de algum filósofo, mas aprendi a não ficar amolando os outros com Filosofia. Segundo um professor que tive durante a graduação: “nós só podemos perturbar quem escolheu entrar em sala de aula para ouvir um cara qualquer falando de outro cara que já está morto”. Então, planejo escrever um texto simples, legal, não muito bombástico e pouco polêmico. Algo leve, suave, no estilo comédia romântica norte-americana ou de algum livro do Augusto Cury.


Você verá que sempre consigo manter o que prometo. Acredito que não serei completamente polêmico. Mas, o cinismo é algo que não consigo retirar do meu ser; extrair algo tão comum exige muito esforço, pois dá muito trabalho conter aquilo que sai com naturalidade. É meu modo de me dirigir ao mundo e é justamente o modo em que o mundo vem a mim. Muitos veem esse traço como uma falha. — Vou explicar o que é o cinismo, será rápido. Sua origem etimológica é, em suma, a expressão “como um cão”; que nada mais é do que a falta de atenção às convenções sociais. Sim, é isso mesmo que você está pensando, também está contido nesse conceito o despudor. Dizem que nos tempos da Grécia antiga, durante a dominação de Alexandre, o Grande, Diógenes — o Cínico — dava uns rôles por aquelas praças.


Ele vivia em um barril, masturbava-se na praça e se negava a usar as roupas que convencionalmente eram exigidas. Certa vez ele viu Platão — ou era Sócrates (?) no momento não lembro — passear na feira, e ouviu: “e aí Platão/Sócrates meu brother, me diz o que é o homem”, o interlocutor teve como resposta “é um animal bípede implume”. Sem contar dois segundos, Diógenes pegou uma galinha depenada e deu na cara de Platão/Sócrates. E esse é o retrato do cinismo clássico. Não me perguntem por que o cinismo virou um defeito!

Não era exatamente sobre isso que iria falar — digitar — hoje. Estava fazendo outras coisas, parei para escrever mais um texto para a revista e acabei entrando em uma crise de verborreia. Dá-me 30 minutos, irei fumar um cigarro e beber uma xícara de café; prometo que voltarei e falarei sobre a sensibilidade do povo de hoje.


Retornei e você não conseguiu perceber que não se passaram apenas 30 minutos, mas TRÊS DIAS. Sim! Agora você descobriu meu segredo, mas não fará diferença; após aquela pausa fui ler O cortiço e acabei ficando apaixonado por Rita Baiana. Pior, fiquei mais louco do que Jerônimo, passei três dias imaginando o remelexo da baiana sambando. Sei o que alguém que está lendo vai pensar ou falar alto: “relaxe, isso acontece!”. Sim, eu sei que acontece; entretanto, o que não vai voltar a acontecer é outro Aloísio Azevedo. Isso é motivo de lágrimas, você pode replicar: “Aloísio Azevedo só houve um e não tem como surgir outro!”. — Não estou falando no sentido literal, o que quero dizer é que a literatura está sendo castrada aos poucos. Serei mais explícito: você pode estar desempenhando a função de algoz da literatura e não percebeu!


Lembrei-me da leitura que fiz há alguns meses, Fahrenheit 451. Em uma das passagens o capitão da brigada de incendiários conversa com o herói. Ele diz: “mano, como eles irão querer ler uma coisa dessas? A metamorfose, o livro em que um babaca vira um rola-bosta para não ir trabalhar. Kafka era um doente, trabalho é vida. Crime e Castigo, o doido está morrendo de fome, enlouquece, mata uma velha e dá uns pegas em uma puta”, ele diz mais coisas — não lembro exatamente como ele diz —, mas é isso aí. Aconselho-te a ler.


O lance é o seguinte: se Fahrenheit tivesse sido escrito por um brasileiro, poderia haver esta fala: “como você vai querer ler O cortiço? Ali ninguém presta. João Romão engana uma escrava, faz com que ela trabalhe de graça com a desculpa de que formam um casal. A mulher não sabe ler, ele forja uma carta de alforria e diz para o proprietário que ela fugiu. Miranda alimenta a ideia de que tem tesão em estuprar a esposa dormindo. Tal esposa é a Dona Estela, que sabe o que está acontecendo, gosta da ideia, finge que realmente está dormindo e permite. Ao mesmo tempo, ela trai o marido com um adolescente de 15 anos. Todo cortiço está revirado de gente de baixa moralidade. Por que você quer ler uma desgraça dessas? Só te trará sofrimento!”. Será?


Ceci n’est pas une pipe, outrora esse foi um dos grandes emblemas artísticos do surrealismo. “Isto não é um cachimbo”, pois não passa de uma representação; uma obra de arte — QUALQUER OBRA DE ARTE — não passa de um conglomerado de representações, não tem como fugir. Colorir uma obra com pessoas maravilhosas é excluir a possibilidade de que pode existir no mundo pessoas de outro tipo. Vou te contar um pequeno segrego: existem pessoas horríveis no mundo! Vou te contar outro: pode até ser você! A coisa está ficando quente, então vai outro: dizer a um autor para suavizar a canalhice de seus personagens é o mesmo que querer segurar a sua pena — no sentido de objeto de escrita —, ao fazer isso você está castrando quem escreve. — Agora vou te dar um conselho — caso você não goste desse tipo de história, não leia. É uma coisa simples, mas saiba diferenciar a safadeza e a maldade de quem escreve — coisa muito difícil.


Sobre isso eu tenho um exemplo chocante — ao menos para mim. Quando li Serotonina, de Michel Houellebecq, fiquei maravilhado até que cheguei a uma passagem escrota. — Terei que contar parte da “coisa” para ter sentido o que tenho para falar. Bem! O cara está um pouco azoado, ele pegou um vídeo da esposa transando com cachorros. — Esqueci o nome do protagonista da história, não faz diferença, vou pular para o que “importa” — Há uma passagem em que ele assiste a um vídeo de pedofilia e “assume” que ficou excitado, — agora percebi, o autor deve ter fixação em olhar a vida dos outros aí descobre o que não “deve”, mas, enfim — quase desisti de ler o restante da obra.


Dei esse exemplo para mostrar que também sou sensível a conteúdos controversos, mas esse sentimento diz mais sobre mim do que do autor. Como diz um amigo meu: “uma obra bate em cada um de um jeito”. E a questão que vem logo em seguida, o pau que bate em Chico dá em Francisco — pronto! No alto dos meus 24 anos, ganhei mais 50; sou oficialmente um velho. O que quero dizer é que a proibição que vem de um lado, uma hora pode vir de outro, isto é, voltando-se contra você.


Atualmente, dizem que obras em que há cenas de estupro, pedofilia, suicídio, abuso de drogas, homicídio, homofobia, violência domiciliar deveriam ser suavizadas — me conte, como? Tudo isso há na sociedade, e, quando o artista põe no papel, não é para o agressor se vangloriar; mas, para retratar o que há por aí, muitas vezes é um protesto — como aconteceu com Lolita, de Vladimir Nabokov; não, não, não, isso é muito polêmico.


Às vezes precisamos de um freio, pode ser de qualquer forma. Irei voltar a mim, vamos valorizar e citar uma autora brasileira: Hilda Hilst, também conhecida como Velha Louca e Bruxa pornográfica. Soube que ela foi adjetivada dessa maneira há pouco tempo — não lembro como encontrei essas informações, prefiro correr o risco de estar errado do que ir procurar no Google.


Enfim, a história começa assim: “era uma vez uma grande escritora, premiada e elogiada por geral. Até que os editores decidem não mais publicar suas obras. Ela ficou puta e escreveu o Caderno Rosa de Lory Lamby. É uma obra incrível, mas controversa — não irei destacar trechos para não correr risco do texto não ser publicado —, foram tirar satisfação com a velha. E ela respondeu: ‘me disseram que ninguém me lia, e agora me leem’, replicaram: ‘mas essa obra é obsena e de mau gosto’. A velha respondeu: ‘é isso e muitas coisas mais, quando fui publicar meu último livro nenhuma editora aceitou; mas aceitaram Lory Lamby e estão me lendo. Fiz isso para provar que minhas obras são lidas’”. — Não sei se ela disse exatamente isso, a essência foi essa; você que está lendo pode procurar, o vídeo é muito famoso. — Tirei o dia para dar indicações, espero que os próximos textos sejam parecidos com esse.


Acabei me perdendo novamente... A questão é a seguinte, Caderno Rosa foi escrito em primeira pessoa e narra a vida de uma menina de 8 anos que é vendida como prostituta pelos pais. — Essa é a polêmica do dia. Mas, por trás da obra há toda uma questão, um protesto. Para mim, isso pode simbolizar que o problema está em quem lê — não é a obra que dá coragem ao criminoso. Então, o crime encontra-se em quem quer castrar o escritor; ao castrá-lo reprime-o de expor ao mundo um novo Caderno Rosa, Lolita, Crime e Castigo, Metamorfose, O cortiço... Pior, esconde do mundo uma nova geração de escritores igualmente brilhantes, geniais, polêmicos, controversos...



Artigo por Breno Valentino

Edição e revisão por Elisa Fonseca


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