É um tanto irônico que haja quem reclame de The Batman “descaracterizar” seu personagem-título, levando em conta as muitas versões já conhecidas na TV e no cinema. Da comédia camp com onomatopeias do seriado clássico dos anos 60, passando pela fantasia gótica de Tim Burton, a palhaçada de Joel Schumacher, o realismo de Christopher Nolan e a tentativa falha de Zack Snyder em fazer um “homem entre deuses”, resta a pergunta: para um herói já apresentado com tantas facetas, o que exatamente Matt Reeves, encarregado deste novo filme, poderia entregar de novo?
A resposta é: tudo e nada. Pois se há uma coisa na qual Reeves é bom é em conjugar diversas estéticas e influências para criar algo autoral e distinto. Egresso do terror — seja o found footage de Cloverfield ou o vampirismo do seu remake de Deixe Ela Entrar —, ele adentrou o reino dos blockbusters sem medo de deixar uma impressão notável, dirigindo o segundo e terceiro filmes da trilogia de Planeta dos Macacos e garantindo o posto de melhor reboot da década passada. No terceiro filme, Planeta dos Macacos: A Guerra, ele já deixava bem claro que não tinha medo de referenciar abertamente clássicos do cinema (mais especificamente filmes como Apocalypse Now e A Ponte do Rio Kwai), para entregar uma obra autêntica.
O mesmo pode ser visto em The Batman. Aqui, Reeves adentra o reino do noir e dos suspenses policiais, em especial aqueles dirigidos por David Fincher, como Se7en e Zodiaco. Se os trailers davam a impressão de que veríamos “apenas” uma releitura do realismo imprimido por Nolan em sua trilogia, bastam alguns minutos para observarmos uma versão muito diferente de Gotham, tratando a cidade como um organismo vivo — e decadente —, essencial à história e imergindo profundamente nela, em sua política, geografia, história e em seus conflitos.
Ao abordar a metrópole como esse imenso tecido social em estado de ebulição, Reeves também mostra porque Robert Pattinson foi a escolha perfeita para interpretar o herói nesta nova versão.
Se você ainda associa o ator a Crepúsculo, faça um favor a si mesmo e abra seus olhos. Na última década, Pattinson tem trabalhado com alguns dos mais importantes diretores e diretoras da atualidade (Claire Denis, David Cronemberg, irmãos Safdie, James Gray, Nolan…), de modo que a visão de quem deve ser o Batman aqui não poderia ser concretizada por nenhum outro ator. Numa decisão acertada do roteiro, o Morcego já está há dois anos na ativa em Gotham, garantindo que não precisemos ver sua história de origem pela enésima vez, mas ao mesmo tempo indicando que ele tem muito a amadurecer e evoluir pelos próximos anos, especialmente em relação ao conflito entre o símbolo que deseja ser vs o símbolo que deve ser.
É um Batman mais vigilante que herói. Ele entende que não pode estar em todos os cantos da cidade para lutar contra o crime, mas sabe inspirar medo, pois é, como ele mesmo afirma, “as próprias sombras”. É uma espécie de detetive noir (com direito até a uma narração em off, cujo único pecado foi não ter sido mais utilizada no filme) que não hesita em derramar sua ira e violência sobre qualquer criminoso que atravessa seu caminho, ou se mostrar um assustador stalker quando necessário; como parceiro e aliado, Batman tem James Gordon (Jeffrey Wright). Mas, mais importante — e esse pode ser um ponto de controvérsia —, é uma figura praticamente indissociável do seu alter-ego rico e órfão. Se em versões anteriores Bruce Wayne sempre era mostrado como a contraparte do Batman, aqui Reeves está mais interessado em mostrar que ao menos nesses anos iniciais, há pouca ou quase nada diferença entre os dois lados do personagem, ao ponto de vermos o mínimo de Bruce no decorrer do filme — quando o vemos, enxergamos uma figura antissocial e negligente com o trabalho nas indústrias Wayne, uma espécie de emo para o qual a música “Something in the Way” do Nirvana cai perfeitamente. Como um personagem diz em determinado momento do filme, o vigilante mascarado é sua verdadeira persona, não o bilionário recluso.
O melhor de tudo é que mesmo com todo o destaque de Pattinson enquanto Batman, ele não é o único a brilhar num elenco estelar, até mesmo nos nomes coadjuvantes. A começar por Zoe Kravitz como Selina Kyle/Mulher-Gato, irresistivelmente magnética, exalando ao mesmo tempo a sensualidade e fisicalidade inerentes à personagem, além de ostentar uma química explosiva com Pattinson em cada cena, seja quando estão se apoiando ou se enfrentando. Sua personagem aqui também está passando por sua própria origem, tal qual o Pinguim encarnado por um irreconhecível Colin Farrell. Trazendo, talvez, os poucos momentos caricatos do filme, Farrell ainda assim consegue criar um vilão relacionável (no sentido de que funciona dentro desta ambientação e deste universo) e parece tão à vontade no papel que é capaz de tornar a expectativa por sua série solo ainda maior. Já Wright, se encaixa perfeitamente como uma espécie de parceiro do Batman, não sendo ainda o comissário que conhecemos, mas já como o pilar de honestidade em meio à corrupção da polícia (uma das muitas instituições corruptas da cidade); embora sua ingenuidade frente a certas situações e indivíduos me incomode, sua dinâmica de good cop/bad cop com o herói casa perfeitamente com a proposta da obra. Do outro lado da lei, John Turturro se revela uma grata surpresa na pele do mafioso Carmine Falcone, se divertindo em seu papel, tanto quanto Farrell como Pinguim, além de ganhar uma gradativa importância no decorrer do filme, ao ponto de se tornar um ponto de convergência entre diversos pontos da trama.
Mas sem sombra de dúvidas é Paul Dano quem rouba a cena na pele do vilão Charada. Se você, como eu, tem pesadelos com a versão galhofa de Jim Carrey para o personagem em Batman Eternamente, não se preocupe: graças a Dano, seus pesadelos serão de outro tipo após assisti-lo aqui. Seu Charada é radicalmente diferente das versões anteriores do personagem, até mesmo nos quadrinhos. É na concepção e execução dele que as influências dos psicopatas de Se7en e Zodíaco ficam mais evidentes, visto que ele é um serial killer atacando as principais figuras públicas de Gotham e orquestrando um plano para destruir a cidade de dentro para fora. Sua presença é tão impactante (seja mascarado ou não) que o único vacilo notável do filme é quando temporariamente parece se esquecer dele para se centrar nas subtramas envolvendo a máfia. E não à toa, quando o foco volta a ser nele e em seu intrincado plano, temos um terceiro ato corajosamente agridoce. Além do mais, o personagem é enriquecido pelo fato de ser construído tanto como uma antítese, quanto como um “espelho distorcido” do próprio Batman, de modo que a grande catarse do herói se dá diante da necessidade de escolher entre permanecer ou não nessa relação simbiótica e doentia.
The Batman faz o até então impossível: entregar uma nova e fresca versão de um personagem que já passou por diversas reformulações nos últimos anos, respeitando suas influências sem soar uma obra derivativa. Em meio à seara de blockbusters de super-heróis, cada vez mais enfadonhos e longos, este é um raro filme do gênero que não apenas bebe de outras fontes, mas também consegue usar sua longa duração (176 minutos) ao seu favor. É um fato assombroso, ainda mais levando em conta como Matt Reeves é econômico na ação, preferindo focar no lado detetivesco e cerebral do personagem, até então pouco explorado em suas versões em live-action. Entre um vigilante/bilionário traumatizado, narrações em off, femmes fatales, vilões terroristas e seus seguidores incels, o resultado é um filme que talvez não agrade a todos, mas certamente se mostra o melhor longa de super-heróis em muito tempo e uma das melhores obras audiovisuais feitas sobre o Batman.
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