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Um pouco de tudo ou quase nada, por Breno Valentino

“Pare o mundo que eu quero descer”, essa foi a grande máxima do século passado; que depois se tornou motivo de chacota e piadas, porém, mesmo assim, continuou ressoando nos ouvidos brasileiros. Nada disso é para se gerar espanto. De 1982 a 2021 pouca coisa mudou e, claro, o povo continua pedindo para o mundo parar. Se é que já não parou; contudo, se parou, eu não vi parar.


A tragédia se aproxima, ou já se aproximou? Ainda estou em dúvida se o mundo acabou. Estou igual àqueles fãs do filme da Marvel esperando os créditos subirem para ver o que tem de surpreendente após os créditos. Enquanto isso não acontece, reservei os primeiros dias do ano da graça de 2022, para escrever algo que vá te lembrar que o calendário foi reiniciado — surpreendam-se, estamos novamente em janeiro. Aos meus ouvidos ouço mais um vaticínio: “E se tudo acontecer novamente?”.


Suspeitas à parte, prefiro embeber meu espírito com outros líquidos. O verão começou dia 20 de dezembro, para o nordeste não fez grande diferença, mas a receita para um suposto AVC é uma garrafa de whisky barato, algumas caixas de cerveja, nenhuma moderação e o calor de cozinhar o cérebro. Acordar dia primeiro de janeiro com dor de cabeça e ainda martelar a obrigação de dizer algo para você sem um galão de água ao lado é uma tarefa hercúlea.


Era para escrever um artigo, mas não tenho tido grandes ideias para artigos; então pensei em escrever uma crônica de feliz ano novo, em meus rascunhos ela começava da seguinte maneira: ontem bebi bastante, o suficiente para um camelo atravessar o deserto. Dormi [agora encaixo um floreio sobre o sonho], acordei [outro floreio, agora sobre o despertar], não tinha nada para fazer [descrever o ócio como atividade], abri o celular e fiquei rolando o feed do instagram [último floreio, agora sobre a futilidade das redes sociais].


Em um pano de fundo de todo esse nada, há três obras confusas: Admirável mundo novo, Fahrenheit 451 e 1984. Lembro as aulas na universidade — “Toda imagem é figura e fundo.” — e daí tenho que extrair algo disso para não ficar largado, caso contrário a Elisa, que estará analisando esse texto, não aceitará me publicar por falta de nexo.


Bem, agora não faz tanta diferença. A ressaca continua, minha cabeça continua querendo explodir, já vomitei duas vezes, ninguém parou o mundo para eu descer, continuo sem entender esse lance da Gestalt, penso em quantas vezes li Heidegger e não entendi nada e em quantas vezes tive que ler Nietzsche para entender apenas uma frase. Todavia, vida que segue, que os distópicos fiquem para trás.


Eis a crônica que não escrevi, que não pretendia dizer nada e não tinha nada para dizer.


Há quem diga que esse é um sintoma de falta de inspiração. Como resposta, eu poderia soltar um palavrão, mas, como sou uma pessoa polida, apenas continuarei digitando... Porém, essa pessoa pode até estar certa.


Nietzsche me deu uma leve clareada a respeito do possível diagnóstico para minha falta de criatividade: falta-me doença, para depois causar “uma saturnal do espírito” que faça com que eu veja o mundo de forma diferente e então consiga produzir algo novo. Mas, se for para ficar doente com o propósito de escrever algo novo, é bem capaz de não aguentar até o final de 2022 e eu ainda quero ir à urna eletrônica votar em alguém que provavelmente não ganhará as eleições.


Já não é mais “ano novo”, parece que o ano continua igual ao anterior. Mudou um dígito e tudo continua o mesmo.


Voltando a Nietzsche, se é que saímos dele: ele diz que o grande gênio passa por uma grande turbulência, então sua arte vira uma vingança. Acabei de ler que Orwell escreveu 1984 durante uma recuperação de tuberculose, ele sobreviveu a tempo de publicar o livro e depois morreu, um ano depois; hoje seu livro é vendido a preço de banana (graças ao fim da obrigatoriedade de pagar royalties aos seus familiares).


Uma obra como aquela pode não ser vista como um grande golpe de vingança? Ela foi lançada em 1949 e logo explodiu, quer dizer: alcançou sucesso. Em 1982, ou 83, Bukowski relembrou que estava a alguns meses de chegar ao famigerado ano de controle total da população por um governo controlador e sádico. Não lembro se ele ficou preocupado, mas elogiou a obra. Como também elogiou Huxley, mas não elogiou Bradbury — também não dá para sair por aí elogiando todo mundo.


Enfim 2022, o ano esperado por muitos, temido por todos. Para alguns: uma vitória ter sobrevivido. Passou 1984 e alcançamos outro patamar em que temos que enfrentar o “terror que a laranja mecânica anuncia” ou esperar o socorro anunciado por Alan Moore em “V de vingança” — alguém com coragem suficiente de papocar tudo —, mixada por um possível governo ditatorial, uma enxurrada de distração para a população e um tanto de censura. Espero que não chegue tudo de uma vez, visto que já vivemos um pouco de cada e em alguns casos quase nada.


Crônica da autoria de Breno Valentino

Revisão e edição de texto por Elisa Fonseca


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