Quando falamos sobre literatura gótica, é praticamente impossível não pensar nesses quatro itens: casarões antigos; segredos de família envoltos em um passado misterioso; heroínas perseguidas e vilões ameaçadores. É sobre estes últimos que vamos conversar no artigo de hoje. Homens aristocráticos, violentos e cruéis, às vezes até mesmo sedutores, que não medem esforços para conseguirem o que querem.
Mas antes de falar desse personagem que se tornou um arquétipo, é preciso contextualizar o período em que ele foi criado.
Como surgiu o Gótico feminino, e o que ele é:
A literatura gótica possui mais de trezentos anos de muita história, nascendo em meados do século XVIII, com a publicação do livro “O castelo de Otranto” (1764), de Horace Walpole. Nesse mesmo momento, outras duas vertentes também surgiam e conquistavam seu espaço: o romance, enquanto estilo literário, e o sentimentalismo.
Até então, apenas a poesia era tida como alta literatura. Sendo visto como um produto inferior, o romance, tanto gótico quanto sentimental, passou a conquistar cada vez mais leitores pelo seu baixo custo de aquisição. As mulheres, em especial, tornaram-se suas maiores consumidoras. Isto porque o espaço de ocupação permitido a elas costumava se restringir ao ambiente doméstico, tornando os livros o único meio possível de explorar o mundo.
Assim, esses romances foram os responsáveis não só pela maior alfabetização feminina, como também pela profissionalização das mulheres enquanto escritoras. A grande demanda do mercado literário pelos romances góticos e os poucos olhares que essas obras recebiam dos críticos, proporcionou às mulheres um meio de se expressarem.
A união do gótico com o sentimentalismo, aperfeiçoada pelas escritoras da época, fez nascer o Gótico feminino. Com o objetivo de discutir os desejos, os medos e o papel da mulher na sociedade. Não é à toa que a maior parte das obras do Gótico feminino explorem a temática da heroína presa a um ambiente doméstico, denunciando os abusos sofridos por elas, além do imenso desejo de liberdade.
Sendo visto como um produto inferior, o romance, tanto gótico quanto sentimental, passou a conquistar cada vez mais leitores pelo seu baixo custo de aquisição.
Os vilões do Gótico feminino
Se a protagonista do Gótico feminino é tudo aquilo que a sociedade exigia que uma mulher fosse – virtuosa, casta, bondosa e pura –, o vilão surge exatamente com a função complementar de representar a hipocrisia e vicissitude dessa mesma sociedade.
Esse vilão geralmente é um nobre – conde, barão, marquês –, um clérigo decadente, ou um bandido que não mede esforços para alcançar seus objetivos: na maioria das vezes, dinheiro e privilégios.
Com um passado bárbaro e não civilizado, esses homens sem escrúpulos são dominados por emoções extremas, motivados por ciúmes, ambições sem limites e desejo por vingança. Com eles, “a virtude cede ao vício, a razão aos desejos e a lei à tirania” (Ana Paula Araújo, 2017). Eles apresentam comportamento autoritário e maligno e têm como principal vítima as mulheres.
Ainda de acordo com Ana Paula:
“O poder quase irrestrito destes personagens vilanescos é legitimado por meio de instituições sociais como a família, o casamento, e a Igreja. Eles simbolizam, por tanto, os valores corruptos da aristocracia em declínio, as vicissitudes religiosas e os abusos da tirania familiar. Por meio da violência, e, valendo-se da posição da qual desfrutam em sociedade, estes antagonistas ameaçam física e psicologicamente suas vítimas” (2017, p.48).
É por isso que, à descrição desses personagens de natureza cruel é dada características demoníacas, equiparando os vilões do Gótico feminino aos monstros, tão comuns na literatura do medo.
Quando se trata desse subgênero, porém, o caráter transgressor desses vilões – pois sua perseguição acaba por impulsionar a história para frente –, está mais vinculado à violência e a misoginia para com suas vítimas do que a elementos sobrenaturais.
Para as heroínas do Gótico feminino a ameaça e o medo não ficam restritos apenas ao desconhecido. Pelo contrário, muitas vezes, aquilo que as cercam é ainda mais perigoso e fatal do que o mundo do lado de fora.
Referência:
SANTOS, Ana Paula Araujo dos. O Gótico feminino na Literatura Brasileira: um estudo de Ânsia eterna, de Júlia Lopes de Almeida. Rio de Janeiro. UERJ, 2017.
Artigo por Bel Quintilho
Ilustração por Filipo Brazilliano
Edição e revisão por Elisa Fonseca